Após passar pelo posto de controle e atravessar a ponte sobre o rio Urubamba, finalmente iniciei a caminhada pela Trilha Inca. Parecia que todos no grupo estavam ansiosos para iniciar logo a trilha. Para mim era a realização de um antigo sonho, justamente após sofrer muito com duas hérnias de disco, ter sido ameaçado de ficar torto, manco e até mesmo ir parar em uma cadeira de rodas. Nada disso aconteceu, consegui me recuperar com fé, dedicação ao tratamento médico, muito esforço e força de vontade. Fisicamente estava bem preparado, tinha treinado muito nas semanas anteriores, algumas vezes até três horas por dia. Ao dar os primeiros passos na Trilha Inca senti uma sensação boa e confesso que até me dei um pequeno beliscão pra ver se não estava sonhando. O beliscão foi algo meio instintivo e ri quando me vi fazendo tal bobeira. Meu maior receio era de sentir dores, de travar a perna e não conseguir terminar a trilha. Preocupava-me o peso da mochila nas costas, não sabia como minhas hérnias de disco iriam reagir a tal peso. Mas independente de tudo, eu daria o meu melhor, ia me esforçar e tentar provar a mim mesmo que estava curado de todos meus males. Pretendia percorrer toda a Trilha Inca e chegar em Machu Picchu, onde deixaria para trás todos os meus problemas, as coisas ruins e as pessoas que me fizeram ficar mal. Para muitas pessoas a Trilha Inca e principalmente Machu Picchu tem um forte valor espiritual, algo místico. Já li e ouvi relatos de pessoas que tiveram nesses locais experiências diversas, que encontraram ao percorrer a Trilha Inca a verdadeira razão de suas vidas, saíram dali mudadas, deram novos rumos ás suas vidas. Eu não sou nada místico, apenas sou uma pessoa que acredita muito em Deus e tem muita fé. E sou muito cético em relação ás coisas, por isso não sabia o que podia acontecer comigo após percorrer a Trilha Inca. Mas por via das dúvidas fiz algo que me ensinaram, peguei duas pedras e coloquei no bolso. Durante os dias na trilha fui conversando com essas pedras, contando a elas sobre minha vida, meus problemas, meus medos, meus sonhos e tudo o que gostaria de mudar em minha vida, ás coisas e pessoas que gostaria de afastar de vez de minha vida, tudo o que eu queria deixar para trás após sair da Trilha Inca. Deixaria uma dessas pedras pelo caminho e a outra em Machu Picchu.
O primeiro trecho da Trilha Inca foi difícil, era uma subida e como ainda não estávamos adaptados a caminhar na altitude com o ar rarefeito, foi meio cansativo esse início. Para compensar o cansaço tínhamos a paisagem, que para todos os lados que olhávamos era maravilhosa. Seguimos costeando uma montanha e abaixo de nós seguia o rio Urubamba. Do outro lado do rio mais montanhas e um vale que seguia junto ao rio, tudo muito bonito. No início estranhei ás muitas paradas para descanso, mas logo entendi que o motivo era para o pessoal não se cansar muito, ir se adaptando aos poucos. Comecei caminhando sozinho e depois de pedir para uma argentina tirar uma foto minha, iniciamos uma animada conversa e caminhamos um bom tempo juntos. O nome da argentina era Carolina e acabamos nos tornando bons amigos nos dias seguintes. Meu espanhol estava meio enferrujado, mas foi possível conversar sobre diversos assuntos, ela falando em espanhol e eu misturando espanhol com portunhol. Para quem fala espanhol é um pouco difícil entender o português. Já pra nós brasileiros é mais fácil entender o espanhol e falando em portunhol acabamos nos fazendo entender melhor. Nos dias seguintes alguns argentinos elogiaram meu espanhol. Fiquei na dúvida se estavam sendo sinceros ou caçoando de mim. Como eu era o único que falava português no grupo, tive que me virar no espanhol e a prática acabou ajudando e logo estava me expressando bem em espanhol, me fazendo entender pelos demais.
Com minha amiga Carolina caminhei boa parte da tarde e em alguns trechos a esperei, pois ela se cansava facilmente, ficava com falta de ar. Eu não queria forçar muito meu ritmo nesse primeiro dia, queria me poupar para o dia seguinte, que seria o mais difícil de todos. A trilha sempre subia e em alguns trechos era plana. No início víamos algumas casas simples ao lado da trilha e por nós passava vez ou outra algum morador. Comentei com a Carolina sobre ás crianças que vimos pelo caminho, que possivelmente passariam a vida toda naquele lugar, nem sabiam muito sobre o mundo, sobre nossa maneira de viver, nossos valores. Então chegamos á conclusão que não devíamos sentir pena delas por isso, pois possivelmente seriam mais felizes do que nós, não conhecendo muitas das coisas ruins que conhecemos, como violência, estresse, depressão, trânsito ruim e outros males das grandes cidades onde vivemos. Aquelas crianças iam crescer e viver num lugar bonito, com ar puro, no meio da natureza, sem muitas das comodidades que a vida moderna nos oferece, mas também sem muitos dos problemas que essa mesma vida moderna nos trás.
No meio da tarde fizemos uma parada mais longa, para o almoço. Eu que sou chato para comida, estava meio temeroso com relação ao que iria encontrar pela frente nas refeições. E fui preparado para o pior. Seguiria a risca o conselho que me foi dado de não visitar nunca a barraca onde eram feitas as refeições. A mesa do almoço foi montada dentro de uma barraca grande e todos os 29 membros do grupo se espremeram dentro dela, sentados em pequenos bancos. Eu preferi ficar numa das pontas. Primeiro foi servida uma sopa de repolho. Os guias traziam os pratos da cozinha e entregavam para quem estava numa das pontas da mesa e esse passava o prato para quem estava ao seu lado, que passava para o outro ao seu lado e assim sucessivamente até chegar ao último da mesa. Logo percebi que tal sistema era prático, mas não muito higiênico, pois muita gente pegava na borda do prato com ás mãos sujas e fatalmente alguma, ou várias bactérias iam parar no alimento. Mas como quem está na chuva é pra se molhar, o jeito era não se preocupar muito com ás coisas e aprender a conviver com ás mínimas condições de conforto e higiene. Se eu quisesse conforto e higiene total, não estaria ali, mas sim em algum outro lugar que me oferecesse tais coisas. Então o jeito era abstrair e levar tudo numa boa. Até me lembrei dos tempos de Exército e das comidas ruins e estragadas que tantas vezes comi. E não morri por isso, até saí de lá mais forte e gordinho. A sopa de repolho não era lá muito saborosa, mas deu pra engolir. Depois veio o prato principal, macarrão, fiapos de omelete e batata. A quantidade de comida nos pratos não era muita, mas ninguém reclamou. Achei que um dos motivos era porque comer muito em alta altitude dificulta a digestão e causa mal estar. Depois um dos guias falou que era esse mesmo o motivo de a comida não ser tão farta. De qualquer forma acho que ninguém passou fome. Na mesa era comum um doar aos que comiam mais, parte da comida que não gostavam ou que não conseguiam comer. Após o almoço foi servido chá de coca bem quente, pra ajudar na digestão e para dar uma força extra para o pessoal. O chá de coca não vicia, não é alucinógeno e não faz mal. Ele apenas ajuda a combater o mal estar causado pelo ar rarefeito. O sabor do chá não agradava muito meu paladar, mas mesmo assim eu tomava sempre e sem açúcar. Também foram distribuídas folhas de coca e guardei algumas no bolso para mascar em momentos que me sentisse muito cansado. A folha de coca, a exemplo do chá também não vicia ou tem efeito alucinógeno. Ela ajuda no combate ao mal estar e da uma força extra. Tanto a folha de coca quanto o chá, são consumidos naquela região a centenas de anos e não causam mal algum.
Após o almoço tivemos uma hora de descanso e então voltamos a caminhar pela trilha. Antes de nós partiram os “porteadores”, carregadores que levam nas costas os equipamentos para acampamento e a comida a ser consumida nos três dias de trilha. Pela lei não podem carregar mais de 25 kg cada um, mas mesmo assim o peso que levam requer muito esforço numa altitude tão alta. De qualquer forma é assim que ganham a vida e sustentam suas famílias. Continuei caminhando ao lado da Carolina e muitas vezes parei para tirar fotos da bela paisagem. Teve um trecho curto de subida que foi muito difícil e o ar faltou muitas vezes. O guia falou que aquele trecho era apenas uma pequena amostra do que nos esperava no dia seguinte. Fizemos mais algumas paradas rápidas para descanso e após chegarmos a um local plano no alto de uma montanha, um dos guias falou que teríamos uma surpresa. Dividiram o grupo em dois e cada pequeno grupo seguiu um dos guias. Meu grupo foi até um canto da montanha e lá do alto avistamos embaixo no vale uma antiga vila inca, chamada Llactapata. Essa vila inca com terraços cultiváveis, era um local para cerimoniais e por volta de 1536 foi queimada pelos incas, para evitar que fosse tomada pelos espanhóis. A vista da vila era maravilhosa e sentamos para ouvir o guia Juan Carlos, contar a história do lugar. Eu não consegui ficar sentado muito tempo e ao mesmo tempo que ouvia suas explicações, aproveitava para tirar fotos e caminhar por perto do grupo. Após uma hora prosseguimos em nossa caminhada e passamos ao lado de um antigo forte inca, mas não pudemos parar para visitá-lo. Após tantas subidas, finalmente começamos a descer um pouco. Seguimos em direção a um vale cercado de montanhas por ambos os lados e ao lado da trilha tinha um rio de águas cristalinas. Caminhamos até o final da tarde e pouco antes de escurecer chegamos a Wayllabamba, a última comunidade existente na Trilha Inca e onde já estava armado nosso acampamento. Esse local ficava no fundo de um vale a 3.000 metros de altitude.
Na hora de dividir o grupo nas barracas, os dois casais ficaram sozinhos em barracas e o restante do pessoal deveria ficar três em cada barraca. Daí um argentino (Diego) me perguntou se eu gostaria de dividir uma barraca com ele. Falei que sim e por sermos os dois “grandes” o guia autorizou que ficássemos somente em dois numa barraca. Arrumei minhas coisas no lado direito da barraca e fui tomar meu banho de gato. Molhei uma pequena toalha, passei pelo corpo e depois fiz o mesmo com lencinhos umedecidos e perfumados. Coloquei uma camiseta limpa e me senti revigorado, limpinho e cheiroso. As meias, a calça e a cueca permaneceram sendo ás mesmas. Já meu companheiro de barraca apenas trocou a camiseta e o cheiro de suor e chulé vindos do lado dele da barraca não eram nada agradáveis. Arrumei meu saco de dormir, enchi meu travesseiro inflável e tive a grande idéia do dia; coloquei o casaco que comprei no dia anterior em Cuzco e que era grosso e macio, debaixo do saco de dormir na região onde ficaria minhas costas. Testei minha “cama” e aprovei o uso do casaco como colchão por baixo do saco de dormir, pois ficou muito macio. Senti muita falta do colchão de ar que costumo usar para dormir quando vou acampar ou fazer caminhadas. Ele pesa dois quilos e meio quando está vazio, o que tornou inviável levá-lo para a Trilha Inca. Descansei um pouco, comi uns chocolates e fui jantar. O esquema era o mesmo do almoço e de entrada foi servida uma sopa de legumes, com poucos legumes e muita água. Depois teve o prato principal que consistia de arroz, legumes e truta. Não como peixe e doei meu pedaço de truta a um argentino (Jesus) que estava sentado ao meu lado. Nos dias seguintes acabamos ficando bons amigos. Após a janta teve de sobremesa um negócio vermelho feito com milho, que parecia gelatina mole, mas que estava gostoso. Por último foi servido um chá diferente cujo nome não lembro. A temperatura baixou bastante e antes das nove todos se recolheram para suas barracas. Lembrei que era noite de lua cheia e resolvi esperar um pouco pra ver a lua surgir por cima das montanhas. A espera valeu a pena e pouco após ás nove horas a lua deu ás caras. Ela estava muito brilhante e clareou todo o vale onde estávamos e deixou melhor definido o perfil das montanhas em volta. Foi uma das noites de lua cheia mais bonitas que vi na vida. Fui o único que ficou no frio presenciando tal espetáculo da natureza, ninguém mais viu. Pena que é impossível captar tamanha beleza através de uma fotografia ou gravação. Foi o tipo de experiência que ficará gravada na memória para sempre. Pouco antes das dez entrei na barraca e a temperatura despencava. Diego roncava alto no seu lado da barraca. Entrei no saco de dormir e fiquei um tempo pensando na vida, depois adormeci. Acordei três vezes durante a noite, por culpa da inclinação do local onde a barraca foi armada. Durante o sono eu ia escorregando aos poucos e tinha que vez ou outra levantar e puxar o saco de dormir de volta para a parte mais alta da barraca. Fora esse imprevisto a noite foi muito boa, dormi bem e até sonhei. E melhor não contar o sonho aqui… rs!!!
Ps1: antes de iniciarmos a trilha foi feita uma apresentação, onde falamos nossos nomes e idades. Eu, com 40 anos era o mais velho do grupo. A maioria do pessoal estava na faixa etária entre 20 e 28 anos.
Ps2: durante todo o primeiro dia de trilha me chamaram de “brasileiro”. A única exceção foi minha amiga Carolina que me chamava de Vander ou Vanderlei e também sua amiga Roxana, que me chamava de Vander ou Bander. Um dos guias me chamava de “Brasil”.