“‘E que o peregrino, mesmo cansado, inquieto sempre, possa ser dos que seguem o caminho mais incerto e mais belo, mesmo que o horizonte seja longínquo.”
(Autor Desconhecido)
Acordei às 6h00min, quando meus companheiros de quarto levantaram para começar a caminhar. Despedi-me deles e voltei a dormir. Acordei novamente às 9h00min, chovia fino e resolvi dormir mais um pouco. Uma hora depois levantei e fui me arrumar para pegar a estrada. Foi então que descobri o pneu traseiro da bike furado. Na hora lembrei-me do que o dono da bicicletaria em Tambaú tinha me falado no dia anterior e lamentei não ter escutado o conselho dele e trocado o pneu. Eu tinha câmera nova e bomba para encher, mas trocar pneu traseiro não é meu forte, pois é mais complicado. Era feriado de carnaval e dificilmente encontraria algum lugar aberto onde pudesse trocar o pneu. Fui tomar café e fiquei pensando no que fazer. Uma opção era ficar ali mais um dia, onde aproveitaria para descansar e também participaria do retiro de carnaval, que estava sendo interessante. Conversei com algumas pessoas e fiquei um tempo sentado numa escada pensando no que fazer. Até que decidi pegar estrada, mesmo que empurrando a bike, e tinha esperança de que em algum lugar da cidade poderia encontrar ao menos uma borracharia aberta, onde pudesse consertar o pneu.
Eram 11h00min quando me despedi de algumas pessoas e saí empurrando a bike. A chuva tinha dado uma trégua quando saí do Santuário. Andei menos de dois quarteirões e um motoqueiro parou ao meu lado e perguntou se eu estava fazendo o Caminho da Fé. Ele disse que me viu saindo do Santuário com o pneu da bike furado e veio tentar ajudar. O nome dele era Carlos, ex-jogador de futebol e que agora trabalha como preparador físico em clubes profissionais. Ele saiu com a moto à procura de alguma borracharia aberta e eu continuei descendo uma rua. Logo passei em frente a um Lava Car, que era talvez o único comércio aberto naquele dia. O dono do Lava Car estava sentado na porta do estabelecimento e perguntou se eu tinha como consertar o pneu. Respondi que tinha uma câmera nova e ele se propôs a fazer o conserto. Logo o Carlos voltou e contou que tinha encontrado um local para consertar o pneu, mas já que eu tinha conseguido resolver o problema, estava tudo bem. Ele conhecia o Evandro, dono do Lava Car. Ficamos conversando os três, enquanto o Evandro realizava o conserto do pneu e ao terminar perguntei quanto era o serviço. A resposta do Evandro foi que não era nada. Perguntei se ele tinha certeza disso e ele respondeu que sim, que era cortesia. Agradeci, despedi-me dos dois e segui viagem, feliz por ter resolvido o problema e por mais uma vez ter encontrado pessoas boas que me ajudaram.
Atravessei o centro da cidade e logo cheguei a uma espécie de parque, bastante arborizado, o qual atravessei seguindo as setas amarelas de sinalização do Caminho da Fé. Depois atravessei uma rodovia e cheguei a um bairro periférico. Passando pelo bairro atravessei por baixo de um viaduto e entrei numa estrada de terra. Não percorri um quilometro pela estrada de terra e começou a chover. Parei para colocar a capa no alforje e a capa de chuva em mim. A chuva ficou muito forte. Segui pedalando e logo entrei por alguns carreadores e atravessei propriedades particulares por uma trilha estreita e cheia de mato. Meu freio ainda estava ruim e tive que tomar muito cuidado para não sofrer algum tipo de acidente e também utilizei muito a sola do pé como freio. Acabei passando por mais uma rodovia, atravessei mais uma propriedade e entrei numa rodovia maior. Fui pedalando pelo acostamento, na contramão e com chuva pela frente. Tinha percorrido dez quilômetros desde Casa Branca, quando o pneu traseiro furou novamente. Eu estava no meio do nada, numa rodovia, debaixo de muita chuva e não tinha como fazer novo conserto no pneu. Restavam-me duas opções; voltar 10 km até Casa Branca e esperar o dia seguinte para trocar o pneu, ou então empurrar a bike pelo próximos 22 km até a cidade de Vargem Grande do Sul, meu próximo destino. Escolhi a segunda opção e passei a empurrar a bike pelo acostamento, com chuva. Quem passava de carro devia pensar que eu era meio maluco ou então deviam ficar com pena de mim.
Empurrei a bike por quase uma hora, até que ao chegar a um pedágio, as setas indicavam que eu deveria virar a esquerda e seguir por uma estrada de terra. A chuva parou, mas mesmo assim a estrada estava bastante embarreada e empurrar a bike por ela não era tarefa fácil. E assim segui por vários quilômetros, no meio de canaviais. Até que cheguei a uma porteira e tanto as setas amarelas de sinalização, quanto o guia, diziam que eu devia atravessar um pasto e tomar cuidado com as vacas. Não gostei muito da idéia, principalmente quando vi a quantidade de vacas e a mistura de barro com bosta de vaca, por onde teria que passar. Mas o negócio era seguir em frente e foi assim que fiz. Tomei todo o cuidado para não assustar ás vacas e fui empurrando a bike pelo meio da grama e do barro misturado com bosta de vaca. Teve um momento que foi engraçado, quando umas vinte vacas ficaram enfileiradas ao lado do caminho me vendo passar. Conforme fui avançando pelo pasto pude perceber que o caminho ficava cada vez pior e logo a trilha desapareceu debaixo da água. Eu teria que passar por uma trilha cercada por dois lagos e um banhado, que com a chuva constante dos últimos dias deixou a trilha submersa. E ao lado, um pouco longe vi um touro com cara de poucos amigos. Fiquei de olho no touro e tomei cuidado para não entrar por engano em uma área onde o touro pudesse me alcançar. Sei que atravessar esse trecho de banhado foi um dos piores momentos de todo o Caminho da Fé. Em alguns trechos tive que levantar a parte traseira da bike, para que o alforje não fosse atingido pela água. Foi bastante cansativo e desgastante passar por esse local. Penso que deveria existir alguma outra opção de caminho para se evitar esse pasto cheio de vacas, principalmente em dias de chuva. Finalmente cheguei ao final do pasto e passei por outra porteira. Atravessei uma ponte rústica e passei a caminhar novamente pelo meio de um canavial.
A chuva ia e voltava, mas de forma fraca. E eu seguia empurrando a bike pelo meio do barro. Ao atravessar outro canavial vi dois animais pretos cruzarem a estrada logo a minha frente, mas foi tão rápido que não tive tempo de tirar uma foto. Não sei dizer que animais eram. Pareciam com ariranhas, mas como não tinha nenhum rio por perto, não posso afirmar que eram ariranhas. Um pouco mais a frente, ao entrar em mais um canavial, um urubu levantou vôo bem a minha frente e levei o maior susto. Devo ter xingado até a quinta geração do tal urubu. Mais um tempo e saí do meio dos monótonos canaviais, atravessei algumas porteiras de arame farpado e entrei numa propriedade particular. Tive que atravessar um longo pasto, onde quase não existia mais trilha e onde era difícil empurrar a bike com o pneu furado. Passei ao lado de algumas casas abandonadas e saí por nova porteira, seguindo então por uma estrada. A chuva voltou e passei ao lado de uma plantação de abobrinhas. Logo passei por algumas goiabeiras carregadas, bem ao lado da estrada. Como não gosto de goiabas, nem perdi tempo tentando colher alguma.
Passava um pouco das 17h00min quando cheguei à periferia da cidade de Vargem Grande do Sul. Tive que atravessar um lamaçal terrível bem na entrada da cidade. Logo entrei no asfalto e ficou mais fácil empurrar a bike. Passei por um Cristo, numa praça da cidade e parei para tirar fotos. Depois cheguei a um descida enorme, de onde se tinha uma visão muito bonita da cidade. Tirei a câmera para bater uma foto e ela escorregou de minhas mãos e saiu deslizando pelo asfalto molhado. Fui pegá-la achando que tinha quebrado, mas felizmente estava inteira, apenas com vários arranhões. Empurrei a bike por mais alguns quarteirões e finalmente cheguei à pousada que o guia indicava. Na verdade era um hotel e ficava dentro de um Posto de Gasolina. Eu estava todo molhado e embarreado quando entrei na recepção do hotel. O recepcionista deve estar acostumado a receber pessoas naquelas condições, pois nem ligou para meu estado e logo me arrumou um quarto e liberou a lavanderia do hotel para que eu guardasse a bike. Pedi permissão e aproveitei para utilizar o tanque e lavar meu tênis e a roupa cheia de barro. Minhas meias achei melhor jogar no lixo. Eram novas, sem furos, mas estavam tão encardidas que nem valia a pena lavar. Conversei um pouco com o recepcionista e ele me contou que os dois rapazes com quem dividi o quarto na noite anterior, tinham chegado ao hotel no meio da tarde e deviam estar dormindo. Ele também contou algumas histórias sobre os peregrinos que passam pelo hotel. O mais interessante foi saber que às mulheres, principalmente as de mais idade, quando chegam ao hotel, a primeira coisa que fazem é pedir uma cerveja.
Entrando no quarto tirei todas as coisas do alforje e a distribui pelo quarto. Então liguei o ventilador de teto bem forte para que o vento pudesse secar minhas coisas. Em seguida tomei um banho quente, onde pude tirar todo o barro acumulado, principalmente em minhas pernas. Já limpinho e cheirosinho caí na cama e dormi um pouco, pois empurrar a bike por 22 km tinha sido muito cansativo. Levantei duas horas depois e fui até uma lanchonete próxima ao hotel, onde jantei. A chuva tinha retornado e logo voltei para o hotel, para a cama e dormi cedo.