Caminho da Fé (9º dia)

“Peregrinar é a decisão maior que o ser humano se permite, pois ele deve seguir em completa solidão, assim se encontrará consigo mesmo.” 

(Katia Esteves)

Acordei às 8h30min e fui arrumar minhas coisas. Tinha chovido a noite toda, sinal de que encontraria muito barro pelo caminho. Tomei o café da manhã, que é algo que nunca faço em casa. Durante a viagem sempre procurei tomar café da manhã, em razão do esforço físico que estava fazendo todos os dias. Saí à rua, fui levar a bike para consertar. Na bicicletaria tinha fila de espera, então deixei a bike lá e fui dar uma volta pela cidade. Queria conhecer melhor as antigas construções da cidade. Começou a cair uma garoa fina e mesmo assim continuei andando. Fui até a Catedral, que fica bem no alto da cidade. Depois fui a um Mercadinho, que o guia mencionava, e onde existia uma gruta com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. Chegando ao Mercadinho descobri que a gruta estava desativada, passando por reformas. Conversei um pouco com o dono do Mercadinho, que é um entusiasta e apoiador do Caminho da Fé. Ele me contou sobre duas mortes de peregrinos, que aconteceram ano passado. Um deles era meio obeso e enfartou ao chegar a Aparecida, provavelmente por culpa do esforço físico e da emoção de chegar ao final do Caminho da Fé. A outra morte foi de um médico, picado por cinco abelhas e que por ser alérgico acabou falecendo ao dar entrada no hospital. O dono do Mercadinho perguntou se eu era alérgico a abelhas, pois existem muitas pelo caminho. Respondi que provavelmente não, pois já levei picadas de abelhas, vespas, marimbondos e nunca tive problemas. Então ele disse para eu comprar uma caixa de antialérgico, por precaução, já que estava viajando sozinho e em caso de ser picado por muitas abelhas e estando num local deserto, demoraria a conseguir socorro. Despedi-me, ganhei um carimbo na credencial e fui direto a uma farmácia comprar um antialérgico. Eu tinha decidido seguir os conselhos que me fossem dados, após os problemas com os pneus da bike.

Pouco antes do meio dia fui buscar a bike no conserto. Passei na pousada pegar minhas coisas e logo parti. Na saída da cidade entrei numa estrada de terra e segui por ela um bom tempo. O tempo estava nublado, o que era bom para pedalar, sem chuva ou sol quente. A estrada tinha bastante barro, nada que fosse problemático. Pretendia percorrer trinta quilômetros à tarde, até a cidade de Borda da Mata. Segundo o guia, o trecho era tranqüilo, com uma única subida grande. Após alguns quilômetros cheguei à pequena cidade de Inconfidentes. O guia dizia para parar no Bar do Maurão, para pegar o carimbo na credencial. O bar ficava na avenida principal e não tive dificuldade em encontrá-lo. No Bar do Maurão aproveitei para almoçar dois pastéis de queijo e tomar uma Tubaína. Depois fiquei conversando com o Maurão, que como todo mineiro é bom de conversa. Ele me contou algumas histórias sobre o Caminho da Fé e também sobre o médico que morreu em razão das picadas de abelha. Logo chegou a esposa do Maurão, que também entrou na conversa, contando fatos sobre peregrinos que por ali passaram. O papo estava bom, dava vontade de ficar mais tempo ali, mas eu precisava seguir em frente. Despedi-me e segui em frente.

Na saída de Inconfidentes, andei um pouco ao lado de uma estrada asfaltada. Logo voltei para uma estrada de terra e segui por ela um bom tempo. Pelo caminho passei por alguns locais com casas e alguns bares. Ao passar o pessoal ficava me olhando. Eu sempre cumprimentava todos que via, e as pessoas respondiam. Depois de quase uma hora cheguei a um local onde existia uma parada para descanso, debaixo de uma árvore, com bancos de madeira e uma torneira com água. Esse local tinha sido preparado pelo Seu Joaquim, um morador que tem apoiado o Caminho da Fé. Ali encontrei três senhoras, que estavam percorrendo o Caminho da Fé a pé, já fazia vários dias. Vanda, Adélia e Nair, eram de São Carlos – SP. Conversamos um pouco e descobri que elas eram nascidas em Goio-êre, uma cidade próxima a Campo Mourão e que viviam há muitos anos no interior de São Paulo. Quando nos preparávamos para partir, surgiu o Seu Joaquim, dono do lugar. Conversamos um pouco e logo minhas novas amigas partiram. Fiquei mais um tempo conversando com Seu Joaquim. Ele me contou sobre o início do Caminho da Fé, sobre como é bom viver num lugar tranqüilo igual aquele e sobre seus planos de construir uma lanchonete ao lado da estrada, como ponto de apoio aos peregrinos. Depois de um tempo despedi-me do Seu Joaquim e peguei a estrada.

Após pedalar uns dois quilômetros, encontrei as três peregrinas, no início de uma grande subida. Desci da bike e segui conversando com elas. Era a primeira vez que eu seguia pelo Caminho da Fé acompanhado por alguém. Conversamos sobre muitos assuntos. Diverti-me com algumas histórias que elas contaram e com as reclamações. Elas não tinham nenhum preparo físico quando iniciaram a peregrinação. Estavam seguindo na força de vontade, na fé. Fiquei admirado com a disposição delas. E achei engraçado quando paravam cansadas e fumavam um cigarro. Segundo elas, o cigarro era para dar uma força extra. Como não tinha pressa, acabei andando um bom tempo junto com as três. Chegamos a um lugar onde tinha alguns abacaxis ao lado da estrada. A Adele colheu um dos abacaxis e descascou para comer. As outras duas ficaram brincando que o abacaxi era venenoso. Foi me oferecido um pedaço, que educadamente recusei, não pelo medo de ser venenoso, mas sim por estar com aftas na boca desde o dia anterior e o abacaxi só pioraria a situação. Pouco antes das 17h00min me despedi das três e decidi voltar a pedalar. Ainda faltavam seis quilômetros até Borda da Mata. Segundo o guia, na cidade existiam dois hotéis, um novo e um antigo, de 1940. Eu queria ficar no hotel antigo e as três também. Então combinamos que ao chegar ao hotel eu reservaria um quarto para elas.

Os seis quilômetros até Borda da Mata foram tranqüilos, com duas subidas não muito fortes. Numa delas vi uma cobra atravessando a estrada. Com cuidado parei ao lado dela e tirei uma foto. A cobra era brava e tentou morder o pneu da bicicleta. Segui meu caminho e deixei a cobra seguir o dela. Não demorou muito e cheguei a Borda da Mata. Logo na entrada da cidade tinha uma subida pesada e desci da bike, passando a empurrá-la. Ao passar em frente a uma casa, um senhor que estava na varando perguntou se eu estava fazendo o Caminho da Fé sozinho. Respondi que sim e ele falou “Êita! Tem que ser muito corajoso para fazer isso!”. Ri do comentário e respondi que não precisava de coragem, mas sim de vontade e fé. Várias vezes durante o caminho, pessoas falaram que eu era corajoso em fazer o Caminho da Fé sozinho. Nunca me achei corajoso por isso. Apenas não tinha outra opção, já que não encontrei ninguém para viajar comigo. Então era viajar sozinho ou não viajar. E não via problema em seguir sozinho, apenas sabia que seria perigoso caso sofresse alguma queda, ou algum outro acidente e me machucasse seriamente. E também sabia que sozinho era mais vulnerável a assaltos. Mas nunca tive medo, sempre orava pedindo proteção e tinha certeza de que nada aconteceria comigo. Alguns chamam isso de fé…

Não foi difícil encontrar o Minas Hotel, que ficava numa esquina, no centro da cidade. Fui atendido pela Dona Maria, dona do local a quase cinqüenta anos. Ela me arrumou um quarto e depois reservou um para minhas três amigas. O hotel estava cheio naquele sábado. A Dona Maria foi à missa e me deixou encarregado de esperar minhas três novas amigas chegarem. Deixou-me a chave do quarto e me deu mais algumas coordenadas sobre o funcionamento do hotel. De repente me vi gerenciando o hotel. Mais uma vez alguém que nunca tinha me visto na vida, depositava confiança em mim. Ao entrar no quarto carregando o alforje da bike nas mãos, todo sujo de barro, me senti o verdadeiro “boiadeiro errante”, personagem de uma música do Sérgio Reis. Meu quarto era bem simples e antigo. Pelo visto não tinha mudado muito desde a construção do hotel. A única mudança era um banheiro que foi adaptado dentro do quarto, onde fizeram uma espécie de muro num canto e colocaram um chuveiro e um vaso sanitário. Deitei na velha cama e fiquei olhando para o teto e imaginando quantas pessoas já tinham dormido naquele quarto nos últimos setenta  anos. Muitos boiadeiros que chegavam em comitiva, com certeza dormiram ali.

Minhas amigas chegaram quando já estava escuro. As levei até o quarto delas e depois fui dar uma volta pelas proximidades do hotel. Na esquina oposta existiam duas praças, uma onde ficava a Catedral e outra com um chafariz. Em volta muitas lanchonetes e sorveterias. Parei numa sorveteria tomar um sorvete e depois entrei numa loja ao lado, que vendia produtos típicos de minas. Tinha muitas variedades de queijos e doces de leite. Deu vontade de comprar alguma coisa para levar para o pessoal de casa, mas como não podia carregar mais peso, achei melhor não comprar nada. Voltei ao hotel e descansei um pouco. Tinha combinado de jantar com as três peregrinas, mas no horário marcado somente a Vanda apareceu. Fomos em uma lanchonete próxima e fizemos um lanche. Então ela voltou para o hotel, levando lanche para as outras duas, que de tão cansadas que estavam, preferiram não sair do hotel. Dei algumas voltas pelo centro e depois sentei-me num banco da praça. Logo a praça começou a encher de pessoas. Muita gente bem vestida, passeando por ali. Sou do interior, conheço muitas cidades do interior, mas nunca tinha visto algo igual. Parecia que quase todos os moradores da cidade estavam passeando pela praça e arredores, e nem era noite de festa. Fiquei um bom tempo olhando o movimento, até que resolvi voltar ao hotel. No caminho passei em frente a uma pastelaria, que vendia “pastel de milho”. O guia dizia para provar essa iguaria local. Eu pensava que o recheio é que era de milho, mas na verdade é chamado de pastel de milho, porque a massa do pastel é feita com farinha de milho. Provei um com recheio de carne e outro com queijo. Era muito bom, uma delícia. Arrependi-me de ter lanchado antes. De barriga cheia fui para o hotel dormir. Ainda não tinha adormecido, quando começou a chover forte, sinal de estrada cheia de barro no dia seguinte.

Dia nublado, bom para pedalar.
Atravessando ponte.
Com o Maurão, em seu bar.
Adele, Vanda, Nair e eu.
Com Seu Joaquim.
Bem ao fundo aparece a cidade de Borda da Mata.
No pasto, uma antiga capela.
Adele e Nair, atravessando o barro.
Olha o abacaxi!
No meio do caminho tinha uma cobra…
Chegando a Borda da Mata.
Catedral de Borda da Mata.

3 opiniões sobre “Caminho da Fé (9º dia)

  • 23 de maio de 2011 em 11:01
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    Caro amigo,sou de Londrina-Pr e gostei demais de seus relatos, gostaria de saber se existem outros riscos pelo CF? Fique com Deus.

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    • 25 de maio de 2011 em 22:39
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      Oi!

      Os riscos são basicamente os que site no blog: abelhas, descidas radicais com muitas pedras, vavas e mais vacas pelo caminho, algumas com bezerro novo partem pra cima de você. Cachorros bravos, cuidado com os motoristas que não respeitam o ciclista. E cuidado com assaltos em cidades maiores, principalmente nos últimos quilômetros do Caminho da Fé.

      Grande abraço,
      Vander

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  • 4 de julho de 2019 em 01:31
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    Fiquei feliz em saber,que o Sr se hospedou em Borda da Mata no hotel da minha Mãe. Ela amava muito seus peregrinos. Era uma mulher muito boa e grbetosa com todos que lá ficavam. Pena não ter tirado uma foto com ela. Mas fiquei emocionada, de verdade. Muito obrigada.

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