Caminho da Fé (8º dia)

“Peregrinar é uma imagem de vida, encerrada em poucos dias, um tempo no qual tomamos verdadeiramente a consciência de nós mesmos.” 

(Anabela Coquenão)

Acordei às 8h00min, com muita dor no corpo e cogitei a possibilidade de tirar o dia para descansar. Logo mudei de idéia. Mesmo com dores o jeito era seguir em frente, sempre… Com muita preguiça levantei e arrumei minhas coisas, num passo de tartaruga. Antes de sair vi um Novo Testamento em cima de uma mesa e resolvi ler um trecho. Abri de forma aleatória e li um texto de Tiago, que falava sobre a paciência. Refleti um pouco sobre o que li, e entendi que devo continuar sendo paciente com a vida, pois dessa forma tudo vai se resolver. E essa viagem também está sendo um exercício de paciência, pois tenho seguido sem muita pressa, curtindo cada momento.

Ao pagar a conta do hotel, a moça que me atendeu disse que tinha me visto na rua no dia anterior. Saindo do hotel procurei uma bicicletaria para poder arrumar o freio. Também tinha um raio quebrado que tive que trocar. O cara que consertou a bike disse que seria bom eu trocar o pneu dianteiro, que não estava muito bom. Respondi a ele que já tinha trocado o pneu traseiro durante a viagem e que pretendia seguir até o final da viagem sem trocar o dianteiro. O cara da bicicletaria também disse que tinha me visto na rua no dia anterior. Pelo jeito estou ficando conhecido na cidade… rs! Saindo da bicicletaria parei fazer um lanche e peguei a estrada.

Após sair da cidade, entrei numa estrada de terra e segui por um longo trecho com bastante descidas. Mesmo com a forte chuva da noite anterior, não tinha muito barro na estrada. Talvez em razão do sol forte. Passei em frente uma escolinha, dessas de sítio, e os alunos ao me verem fizeram a maior festa, correndo para a cerca para falar comigo. Fui atencioso, mas preferi não parar. Cheguei a primeira subida do dia e depois dela novas descidas e retas, por uma região muito bonita. Então cheguei ao início da Serra dos Lima e teria que superar a segunda pior subida do Caminho da Fé. O sol do meio dia estava forte, a estrada com pedrinhas soltas que me faziam escorregar. Foi complicado percorrer esse trecho. Quase na metade da subida vi uma pequena capela e ao lado uma mina de água, fria. Parecia até uma miragem em meio ao deserto. Tirei as luvas para poder lavar o rosto. Sentei-me em frente a capela e fiquei um bom tempo ali, pensando na vida. Não tinha a mínima vontade de voltar a empurrar a bike morro acima, debaixo de sol. Mas tinha que seguir em frente e assim voltei para a estrada. Quase um quilômetro depois foi que dei falta das luvas, que ficaram ao lado da mina. Voltar para buscá-las seria complicado e achei melhor seguir em frente, sem as luvas. Se fosse algo de maior valor, até que valeria a pena voltar para buscar, mas as luvas já estavam bastante usadas e não valia o esforço de retornar. Nesse trecho passei a pendurar o capacete no guidão e a usar boné para me proteger do sol. Somente em trechos de descida é que colocava o capacete. Após chegar ao final da grade subida da Serra dos Lima, comecei a andar por um trecho com longas retas e descidas. Passei por um local onde estavam carregando um caminhão com batatas colhidas em uma plantação ao lado. Debaixo de uma árvore vi quatro moças sentadas. Elas estavam colhendo as batatas e vestidas igual bóias-frias, cheias de roupas. Ao passar por elas dei um ‘”boa tarde” e pude notar que as quatro eram muito bonitas, mesmo sujas e vestidas com roupa de trabalho. Segui pedalando e pensando na vida difícil que muitas pessoas levam. Logo comecei a descer novamente. As descidas eram tão íngremes que as mãos doíam de tanto apertar os freios. Em razão das pedras e buracos na estrada, não dava para correr muito, era mão nos freios o tempo todo. Cheguei num local de onde era possível ver a pequena cidade de Barra, no fundo de um vale. E do outro lado do vale dava para ver a estrada e as subidas que me esperavam mais tarde.

Na entrada de Barra, passei por algumas vacas soltas ao lado da estrada. Precisava passar por um mata burro, sobre um rio. E bem no meio do caminho tinha uma vaca enorme, grávida, possivelmente de gêmeos. Gritando tentei fazer a vaca sair da frente, mas isso a deixou brava e ela ficou me encarando com cara de poucos amigos, e nem arredava as patas de onde estava. Gritei mais um pouco, tentei falar com a vaca, até pensei em tacar alguma pedra nela. De repente, do nada chamei a vaca pelo nome de uma pessoa e a vaca saiu da estrada. Comecei a rir. Será que o nome da vaca era o mesmo dessa pessoa, que por razões obvias não vou citar aqui? De qualquer forma a vaca liberou o caminho e segui em frente.

Barra é uma cidade pequena e tranqüila, um lugar bucólico. Logo na entrada da cidade vi um monte de canarinhos numa cerca, uns vinte. Começou a cair uma garoa fina e parei num Mercadinho, com a intenção de comer alguma coisa. Acabei almoçando dois potes de sorvete. Sentei em frente a porta do Mercadinho e fiquei tomando o sorvete e curtindo o momento, a tranqüilidade do lugar. A sensação era de que naquela cidadezinha o tempo tinha parado. Acredito que passar uns dias ali cura qualquer estresse ou depressão. Senti-me feliz por estar ali, num lugar tranqüilo, no meio do nada, curtindo a vida, o momento. Algo bem diferente de minha vida um ano antes. Nada como um dia, uma semana, um mês, um ano após o outro… Fiquei quase uma hora sentado naquele Mercadinho, meditando sobre a vida. A única coisa que achei estranho foi o açougue que funcionava nos fundos. As carnes ficavam penduras, a mostra, sem preocupação com refrigeração.

Precisava seguir em frente e perguntei para a dona do Mercadinho, onde podia conseguir o carimbo para minha credencial do Caminho da Fé. Ela respondeu que seria na Pousada, que fica atrás da igreja, mas que não tinha ninguém lá aquela hora. Lamentei ficar sem o carimbo de Barra e então a dona do Mercadinho disse que eu podia ir até a Pousada e entrar, pois os donos deixavam o lugar aberto e o carimbo em cima da mesa. Fui até a Pousada, meio sem jeito entrei e fui até uma mesa onde encontrei o carimbo. Mais uma vez fiquei impressionado com a confiança que o pessoal deposita em estranhos. Saí rapidamente e resisti a tentação de pegar uns biscoitos que estavam sobre a mesa e tinham aspecto de serem apetitosos. Atravessei a cidade e logo cheguei num lugar, cuja foto estava no guia e que desde a primeira vez que li o guia, mais de uma ano antes, tinha sido a foto mais bonita que vi. Agora estava ali, em frente a paisagem da foto que admirei durante vários meses. Foi um momento gostoso, difícil de explicar.

Após tirar algumas fotos, saí de Barra e logo cheguei numa grande subida, com muito barro. Foi um esforço imenso empurrar a bike morro acima, com todo aquele barro. Após a subida entrei num trecho cercado de mata e atravessei dois riachos, dessa vez sem molhar os pés. Saindo da mata, entrei numa parte com muitas descidas. Em volta a paisagem era exuberante, com muito verde. Era possível enxergar a quilômetros de distância, uma paisagem de beleza tão grande que não é possível captar com a câmera, é o tipo de beleza que você guarda na mente. No final do trecho de descidas cheguei a uma pequena localidade que não recordo o nome. Passando em frente a uma escolinha, vi uma moça lavando a calçada com uma mangueira. Parei e pedi para encher minhas garrafinhas com água. Conversei um pouco com a moça, que fez perguntas sobre de onde eu era, sobre o Caminho da Fé. Despedi-me e segui em frente, passando ao lado de uma antiga casa de fazenda, muito bonita.

O restante da tarde fui alternando trechos de curtas subidas e descidas. Tudo ia bem, até que o pneu da frente esvaziou. Tentei encher com a bomba de ar e percebi que ele tinha um pequeno furo. Na hora lembrei-me do conselho do rapaz da bicicletaria em Andradas. Mais uma vez tinha ignorado um conselho sobre trocar pneu e fiquei na mão. Decidi que ia ouvir mais os conselhos que me dessem pelo caminho. Os quilômetros seguintes foram de muitas paradas para encher o pneu da bike e seguir pedalando, até parar novamente e encher o pneu.

Ás 17h00mim cheguei a cidade de Crisólia e parei no Bar da Zetti, para carimbar a credencial do Caminho da Fé. Aproveitei para tomar uma Tubaína gelada e descansar um pouco. Informei-me sobre a existência de algum lugar na pequena cidade, onde pudesse consertar o pneu, e a respostas foi que não existia nada. A Zetti me aconselhou a seguir pela estrada de asfalto, até Ouro Fino, meu próximo destino. Segundo ela, seriam somente quatro quilômetros, quase todo em descida. Já se eu fosse pelo Caminho da Fé, seriam sete quilômetros, com algumas pequenas subidas. Optei por seguir pelo Caminho da Fé, mesmo correndo o risco do pneu me deixar na mão de uma vez e eu ter que empurrar a bike. Despedi-me da Zetti e peguei a estrada.

Não demorou muito e passei por uma árvore onde estava pregada uma placa indicando que faltavam 250 quilômetros até a cidade de Aparecida, meu destino final. Ou seja, eu tinha atingido exatamente a metade do Caminho da Fé, o que me deixou bastante contente. O pneu colaborou e após parar umas três vezes para enchê-lo, finalmente cheguei à periferia de Ouro Fino. Ali passei por um momento delicado. Ao descer em alta velocidade por uma estrada asfaltada, na entrada da cidade, vi três rapazes e uma moça saírem do meio do mato, logo a minha frente. Como eu estava em alta velocidade, eles só me viram quando passei por eles, e se assustaram. Deu para sentir o cheiro da maconha que eles fumavam e imagino que se fosse num trecho de subida, ou então se tivessem me visto antes, eles teriam me assaltado. Nas pequenas cidades por onde passa o Caminho da Fé, não existe grande risco de assaltos. Já próximo às cidades maiores esse risco aumenta e li relatos de peregrinos que foram assaltados, quase sempre por usuários de drogas. Infelizmente o consumo de drogas e a violência que envolve esse consumo, está se transformando um problema muito grande em todo o Brasil. E nossas autoridades não dão muita bola a isso e continuam tratando os usuários como coitadinhos, nem para a cadeia vão. Na verdade se não existir o usuário, não existe o grande traficante. Então se deve coibir o uso da droga e punir os pequenos usuários, pois se continuar como está, a violência só vai aumentar, já que o consumo desenfreado de drogas fomenta cada vez mais a violência.

Ao entrar na cidade de Ouro Fino, o pedal esquerdo quebrou. Por sorte eu estava no final de uma pequena subida, a baixa velocidade. Se a quebra do pedal acontecesse quando eu estivesse correndo bastante, isso poderia ter causado um sério acidente. Parei na estátua do Menino da Porteira, para tirar fotos. A cidade de Ouro Fino ficou famosa em todo o Brasil, graças a música “O Menino da Porteira”, que foi gravada pelo cantor Sérgio Reis, em meados dos anos setenta. Um dos compositores dessa música possuía um sítio nos arredores da cidade, e talvez por isso tenha citado a cidade na música. A estátua é bonita, tem dez metros de altura e ao lado tem uma placa de bronze com a letra da música e embaixo a mão do Sérgio Reis moldada no gesso.

Quando deixei a estátua para trás e entrei na cidade, já estava escuro. Segui empurrando a bike com o pneu totalmente murcho, até chegar numa pousada bem no centro da cidade. A pousada era legal, mas estranhei pedirem o pagamento adiantado. Era a primeira vez que isso acontecia. Fui para o banho e ao sair vi que minhas pernas a cada dia tinham mais marcas de arranhões e de picadas de insetos. Estavam ficando feias com tantas marcas. Logo saí e dei uma volta pela cidade, que é bastante antiga, com muita história e que possui construções antigas e conservadas. Jantei em um restaurante simples, antigo e simpático. A comida era boa demais e acabei exagerando. Depois dei mais uma volta pelo centro, para fazer a digestão. Voltei para a pousada e fui direto para a cama. Mal deitei e começou a chover. Com o barulho da chuva foi ainda mais gostoso dormir.

Estrada poeirenta.
Capela onde esqueci minhas luvas.
Bela paisagem.
Mais uma igrejinha perdida.
Longa estrada…
Capelinha ao lado da estrada.
Região de serra.
No fundo do vale, a pequena cidade de Barra.
Vaca prenha no meio da estrada.
Mata burro sobre o rio.
Igreja de Barra.
Minha paisagem favorita.
Lugar bucólico.
Barro na subida.
Atravessando o pequeno riacho.
Antiga casa de fazenda.
Uma das muitas paradas para encher o pneu furado.
Em frente a estátua do Menino da Porteira. Ouro Fino – MG

Caminho da Fé (7º dia)

“Peregrinar é rezar com os pés.” 

(Autor Desconhecido) 

Acordei 8h30min, olhei pela janela e vi que o sol brilhava forte, mas mesmo assim fazia um friozinho. Da janela dava para ver um pouco distante a pequena São Roque da Fartura na encosta de uma morro, uma paisagem bonita. Estava todo dolorido do esforço do dia anterior e o jeito foi tomar um remédio para dor. Arrumei minhas coisas, tomei café na cozinha da Dona Cida e logo peguei a estrada, pois queria aproveitar o dia de sol e tentar chegar até a cidade de Andradas, já em território mineiro. Ou seja, pretendia fazer pouco mais de cinqüenta quilômetros naquele dia, então não podia perder tempo. Antes de partir confirmei com Dona Cida sobre a informação de que deveria seguir pela estrada asfaltada e não pela estrada de terra por onde passa o Caminho da Fé. Diante da resposta de que deveria seguir pela estrada asfaltada, despedi-me e parti. Até então não tinha usado capacete para pedalar. Em razão da chuva dos primeiros dias, tinha achado melhor não utilizar luvas e capacete, pois seriam mais coisas para molhar. No dia anterior, com sol, tinha usado luvas. Agora que passaria por trechos perigosos, era melhor usar equipamento completo, por segurança.

Logo ao sair da Pousada da Dona Cida andei alguns metros por uma estrada de terra e cheguei à estrada asfaltada. Próximo tinha a entrada de uma cachoeira, mas tinha tomado tanta chuva nos últimos dias que não fiquei com vontade de ver mais água. Comecei a pedalar pelo canto da estrada, pois a mesma não tinha acostamento. Fiquei preocupado com isso, pois sabia que seriam 22 quilômetros até chegar à próxima cidade, Águas da Prata. Se todo o trecho fosse naquela estrada, seria bastante perigoso. Não andei muito e cheguei numa grande subida, onde o jeito foi descer e empurrar a bike. Procurei ir bem no canto da estrada, mas mesmo assim os carros passavam bem próximos a mim. Felizmente a maioria dos carros ao passar por mim distanciavam-se, indo para a pista contrária. A subida parecia não ter fim, foram quase três quilômetros empurrando a bike, até que cheguei no alto de uma serra. Ali subi na bike e comecei a descer, descer e descer. Havia muitas curvas fechadas e buracos na pista, tive que tomar muito cuidado. Abusei do freio traseiro e ele logo começou a falhar, dando sinais de desgaste. Após uma das muitas curvas, tive que parar num local onde trabalhadores estavam consertando a estrada e o trânsito estava momentaneamente impedido. Um cara que cuidava do trânsito veio até mim e me deu uma bronca, dizendo para eu não correr tanto pois podia colocar em risco a vida de um dos operários que trabalhavam na estrada. Inicialmente achei que ele estava brincando e tinha até pensando em fazer uma piadinha, mas diante da cara amarrada dele vi que a bronca era séria e resolvi me calar. Depois de alguns minutos ele liberou a estrada e voltei a descer feito louco estrada abaixo, testando o freio traseiro e vendo que ele estava cada vez pior. Então em uma curva vi que estava chegando numa cidade, a qual não lembro o nome e que não constava em meu guia. Daí lembrei que estava fora do percurso original do Caminho da Fé e que por esse motivo a tal cidade não era mencionada no guia. Chegando no trevo da cidade descobri que a estradinha ruim que estava percorrendo terminava ali e que dali para frente eu deveria seguir por uma rodovia bastante movimentada. Seria serra abaixo o tempo todo. Ao menos o acostamento era bom.

Comecei a seguir pela rodovia, primeiro na contramão e depois pela mão correta, onde o acostamento era mais largo. Era descida o tempo todo e curvas bastante abertas onde dava para correr bastante. Eu não precisava pedalar, era só deixar a bike descer. A paisagem em volta era muito bonita, mas não dava para ficar apreciando. Logo o freio de trás parou de funcionar de vez. Parei para tentar consertar, mas não foi possível. Tive que tomar muito cuidado dali para frente, freando somente com o freio dianteiro. Logo descobri que em razão do peso da bike e da velocidade com que estava descendo, quando eu apertava o freio dianteiro, conseguia parar somente uns cinco metros depois. Isso poderia ser muito perigoso caso precisasse parar bruscamente por culpa de algum buraco, ou carro parado no acostamento. Passei a tomar ainda mais cuidado, observando bem a estrada à frente. Mesmo assim corri bastante e não demorou muito para chegar num trevo, sair da rodovia e entrar numa estrada menor. Mais alguns metros e cheguei numa ponte, que não tinha acostamento. Para piorar a situação, a ponte ficava numa curva em descida. Estudei a melhor forma de atravessar a ponte e resolvi empurrar a bike pela contramão. Logo nos primeiro metros sobre a ponte, notei que os carros que subiam em sentido contrário estavam bem devagar. Imagino que algum carro que estava descendo tenha dado sinal de luz avisando que tinha algum perigo (no caso eu) na pista e por isso os carros diminuíram a velocidade. Ou então foi a Providência Divina que mais uma vez me ajudou. Atravessando a ponte, subi na bike e voltei a pedalar pela contramão. Logo cheguei à cidade de Águas da Prata. Tinha percorrido vinte dois quilômetros em menos de duas horas, um recorde.

A cidade de Águas da Prata é uma conhecida estação termal, que recebe muitos turistas. Cidade antiga e simpática, foi ali que começou o movimento pela criação do Caminho da Fé e é nela onde fica a sede do Caminho da Fé. A cidade é pequena e logo estava pedalando pelo centro. Vi uma bicletaria e parei para regular o freio. O rapaz que fez o serviço não cobrou nada. Agradeci e ao sair da bicicletaria descobri que ela ficava ao lado da sede do Caminho da Fé, onde também funciona uma Pousada para os peregrinos. Fui até lá pegar o carimbo na credencial e conhecer o lugar. Ali fiquei sabendo que a informação sobre o trecho entre São Roque da Fartura e Águas da Prata estar intransitável era incorreta. Fora motivada por culpa de um peregrino meio enjoado que não deve ter gostado de atravessar trechos de muito barro e chegando na sede do Caminho da Fé passou a informação de que era impossível andar por aquele trecho. Eu tinha passado por trechos muito ruins e não teria tido problemas em passar por esse trecho. Foi uma pena ter sido vítima de uma informação errada, mas não dava mais para voltar atrás. O negócio era seguir em frente e foi o que fiz.

Na saída de Águas da Prata, parei fazer um lanche leve, numa lanchonete que fica em frente a antiga Estação de Trem, que foi inaugurada por Don Pedro II. Não me demorei muito e segui em frente. Andei cerca de um quilômetro pelo asfalto e entrei numa estrada de terra. O sol estava muito forte e fazia bastante calor. A estrada tinha subidas curtas e muitas retas o que fez render a pedalada. Passei por um igrejinha perdida no meio do mato e parei para descansar e tirar algumas fotos. Não me demorei e segui em frente.

Boa parte da tarde segui por meio de uma estrada deserta e fiquei um bom tempo sem ver ninguém. Passei por uma cachoeira no meio do mato e parei para descansar um pouco. Depois atravessei uma região de mata fechada, onde a sombra e a umidade davam a sensação de frio. Era como entrar num ambiente com ar condicionado ligado. Em alguns trechos no meio da mata, dava certo medo do silêncio do lugar ou então de ruídos estranhos que vinham do mato. Nessas horas a imaginação “viaja” um pouco e fiquei imaginando que a qualquer instante um onça surgiria no meio da estrada. Felizmente o único animal que surgiu foi um tatu, ao lado da estrada. Parei bem pertinho dele e fiquei em silêncio o observando. Até que em determinado momento ele começou a farejar o ar, sentiu meu cheiro e saiu correndo para o meio do mato. Confesso que meu cheiro não deveria ser dos melhores, sujo e suado como estava.

E finalmente numa curva da estrada cheguei num rio que não tinha ponte e que segundo informações era a divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Pensei que o rio era raso e fui tentar atravessá-lo pedalando. Quando chegou no meio do rio descobri que ele era um pouco fundo e por pouco não caio um tombo feio. Consegui descer da bike e atravessei caminhando. Mesmo num dia de muito sol eu consegui molhar os pés. Era o sétimo dia de viagem e o sétimo dia em que eu ficava com o tênis molhado. À noite no hotel ao olhar o guia, vi que o mesmo informava sobre uma pinguela no lado direito da estrada, que permitia atravessar esse rio sem se molhar. Confesso que não vi tal pinguela, isso se ela ainda existir.

Foi de certa forma algo marcante passar a pedalar em outro estado. Sabia que dali para frente o caminho ficaria mais difícil, pois em Minas Gerais tem muitas serras e trechos com pedras. No dia anterior, o Seu Francisco tinha me falado que em Minas o caminho seria bem mais “dificultoso”. Mas estava preparado para tudo e cada dia estava mais perto de meu destino final, o que era algo bastante motivador. Mais uma vez fiquei sem água e com o calor que fazia isso foi um complicador. Olhando no guia vi que passaria pela Pousada do Gavião, que ficava alguns quilômetros a frente de onde estava quando acabou minha água. Então passei a pedalar mais rápido, até que cheguei à pousada. Uma funcionária me atendeu e encheu minhas garrafinhas com água. Aproveitei para tomar um Guará Vita, uma espécie de refrigerante que só é vendido no Sudeste e que gelado é muito bom. Também ganhei mais um carimbo em minha credencial e segui em frente. Tinha um longo trecho até chegar em Andradas, onde passaria a noite. E não queria correr o risco de ficar na estrada à noite.

O trecho final antes de Andradas foi bastante difícil, pois tinha muitas pedras na estrada. O trecho era todo em descida, inclinadas demais. Tive que tomar muito cuidado para não derrapar nas pedras e cair. Qualquer descuido seria fatal. As mãos doíam de tanto apertar os freios. Mesmo sendo descida não dava para correr, tinha que seguir devagar em meio à estrada pedregosa e freiando sempre. Sofrer uma queda naquele lugar era fácil e como a região era deserta, caso eu caísse e me machucasse, ia demorar até conseguir algum tipo de socorro. Então segui com muito cuidado, atenção triplicada. Começou a escurecer e logo fiquei preocupado, pois não via mais nenhuma seta indicando o Caminho da Fé. Fiquei com receio de não ter visto alguma seta indicando que deveria seguir por outra  das estradinhas pelas quais passei. Concentrado como estava em olhar para o chão e evitar cair nas pedras, bem que podia ter deixado passar despercebido a sinalização. Comecei a ficar muito preocupado com a possibilidade de estar no caminho errado. Voltar para trás seria muito complicado, em razão das descidas íngremes e cheias de pedras se transformarem em subidas íngremes e cheia de pedras. Rodei mais uns dois quilômetros até encontrar uma seta amarela pintada em uma árvore, sinalizando que o caminho estava correto. Ver aquela seta me deu uma grande sensação de alívio.

Já no final do dia pude avistar a cidade de Andradas. Então começaram a passar alguns carros pela estrada que até então estava deserta, todos em alta velocidade e mal tomando conhecimento de minha presença na estrada. Passei a tomar ainda mais cuidado. Finalmente cheguei à periferia da cidade e seguindo a sinalização das setas amarelas pintadas em postes, fui me aproximando do centro da cidade. O trânsito era caótico, o fluxo de veículos intenso e por mais de uma vez quase fui atropelado. Nessa de tomar cuidado com os carros, acabei passando direto pelo hotel onde pretendia passar a noite e somente um quilômetro depois é que me dei conta disso. Então dei meia volta e segui empurrando a bicicleta pela calçada. Chegando no hotel tive que fazer um último esforço e subir uma enorme escadaria com a bike, até chegar no quarto. Tinha percorrido 54 quilômetros nesse dia, parte graças aos 22 quilômetros de descidas pela estrada asfaltada. Mesmo assim era uma quilometragem considerável e que me deixou feliz.

Com a bike dentro do quarto nem precisei tirar o alforje com minhas coisas, igual fizera em todos os dias anteriores. E como não tinha chovido, não tinha molhado nada. Era o primeiro dia sem chuva desde o início da viagem. Fui tomar banho e deitei para descansar um pouco. Logo começou a chover. Ao menos dessa vez eu não precisava me molhar na chuva. Quando a chuva parou, saí dar uma volta pelo centro da cidade. Lanchei e aproveitei para ir numa Lan House e ver meus emails. Fazia uma semana que não acessava a internet. Nos dois primeiros dias foi complicado ficar sem internet, quase tive crise de abstinência. Mas depois não fez falta. Essa viagem me fez ver que posso viver com pouca coisa, que tudo na vida é uma questão de se adaptar ao meio em que se vive. Logo voltei para o hotel e dormi cedo, cansado que estava.

São Roque da Fartura – SP.
Trevo.
Tentando consertar o freio.
Descanso e água.
Em frente a sede do Caminho da Fé.
Águas da Prata – SP.
Ao fundo a Estação de Trem que foi inaugurada por Don Pedro II.
Igrejinha ao lado da estrada.
Placa indicando a distância que ainda tenho que percorrer.
Descansando próximo a cachoeira.
Mais uma fazenda para atravessar.
Rio na divisa entre São Paulo e Minas Gerais.
Estrada mineira.
Tatu.
Trecho com muitas pedras.
Chegando à Andradas.