Caminho da Fé (6º dia)

“O ser humano é um peregrino. É só na aparência que ele tem uma geografia.”
(Nélida Pinon)

Levantei 08h30min, todo dolorido em razão de ter andado 22 km no dia anterior empurrando a bike. Saí a procura de uma bicicletaria. Tive que andar um monte até chegar a Bicicletaria do Feijão, na periferia da cidade. Ali troquei o pneu traseiro, colocando um pneu especial para estradas de terra. Também fiz uma revisão geral nos freios e nas marchas. O Feijão foi bastante simpático e deu algumas dicas sobre o trecho seguinte da viagem. Ele me aconselhou a seguir pelo asfalto naquele dia, pois segundo ele eu encontraria muito barro pelo caminho, se seguisse a rota original do Caminho da Fé. Voltei para o hotel, arrumei minhas coisas, paguei a conta e parti pouco antes das 11h00min. Atravessei o centro da cidade e parei em frente a catedral para tirar uma foto. Fazia sol forte, o primeiro dia de sol que eu pegava no Caminho da Fé.

Mesmo com sol forte havia muito barro na estrada. Os primeiros quiômetros pedalei por longas retas e subidas não muito íngrimes. Após quase uma hora de pedalada cheguei num local onde existia um trecho de muito barro. Parei e fiquei pensando qual seria a melhor maneira de atravessar todo aquele barro. Ao lado na estrada, dois caras descansavam em cima de um trator. Querendo me ajudar, disseram que seguindo por uma pequena estrada a esquerda e depois virando numa árvore grande que aparecia um pouco distante, eu desviaria do barro. Segui o conselho deles e fui por uma estradinha que seguia ao lado de uma cerca de arame farpado. Era tudo descida e após uns dois quilômetros cheguei na tal árvore. Virei a direita, atravessei um canavial e cheguei a um pasto, com porteira fechada e cheio de vacas. Não achei boa idéia atravessar tal pasto, pois vi dois touros com cara de poucos amigos. Dali resolvi retornar até onde tinha desviado da estrada. Sei que nessa brincadeira perdi quase uma hora e pedalei 5 km a toa. Quando cheguei novamente no local cheio de barro, os caras do trator não estavam mais lá. Fiquei na dúvida se a informação deles era com intenção de me ajudar ou de me sacanear. Prefiro pensar que queriam ajudar. Então o jeito foi atravessar o trecho cheio de barro. Foi a maior dificiculdade, não dava para passar pedalando e tive que empurrar a bike. O barro grudava nos pneus, nos freios e se acumulava entre o pneu traseiro e o bagageiro, fazendo com que o pneu travasse e ficasse pesado para empurrar a bike. Depois de atravessar esse trecho, ainda perdi um bom tempo para tirar o barro da bike.

Após sair do trecho com barro, passei a pedalar por uma estrada melhor. Logo avistei algumas araucárias, sinal de que estava entrando numa região de serra, com altitudes mais elevadas. Na verdade eu estava nos arredores da Serra da Mantiqueira e nos dias seguintes atravessaria várias regiões de serra, com muitas subidas. Mais um pouco de estrada e cheguei numa igrejinha simpática, num local chamado Santana. Parei para descansar e depois rezei um pouco aos pés de uma pequena imagem de Cristo. Acabei pisando num formigueiro e levei diversas picadas nas pernas. Minhas pernas que já estavam marcadas com cortes provocados por mato, picadas de mosquitos e arranhões diversos, ficou ainda mais cheia de marcas. O sol começou a sumir e nuvens de chuva surgiram. Então achei melhor pegar a estrada novamente. Comecei a subir e olhando no guia vi que essa seria umas das maiores subidas que encontraria pelo caminho. Tive que empurrar a bike e logo meu estoque de água acabou. Era o primeiro dia que pedalava sob sol e com calor forte, então consumi mais água do que nos outros dias. Sabia que quase no final dessa enorme subida ficava a Pousada da Dona Cidinha, onde encontraria água.

Após sofrer um monte empurrando a bicicleta morro acima e com a boca seca pela sede, finalmente cheguei a Pousada da Dona Cidinha, debaixo de uma garoa fina. A Dona Cidinha não estava, quem me atendeu foi o Seu Francisco, marido dela. Tomei dois Gatorade extremamente gelados e isso aliviou minha sede. Como almoço comi queijo caipira com docê de banana caseiro. Não queria comer muito, pois logo voltaria para a estrada, mas o queijo estava tão bom que comi a metade. Conversei mais um pouco com o Seu Francisco, que contou que o pai dele teve terras em Campo Mourão, nos anos cinquenta. Refiz meu estoque de água e aproveitei para levar as duas garrafinhas de Gatorade, também com água. O local da pousada é bonito, fica no alto e da para ter uma visão ampla da região. Ao longe dava para ver a chuva caindo e resolvi voltar logo para a estrada e tentar fugir da chuva. Despedi-me do Seu Francisco prometendo voltar ali um dia.

A enorme subida logo chegou ao fim e finalmente peguei algumas descidas e retas. Passei por uma pequena ponte onde a água estava quase passando por cima, em razão da quantida enorme de chuva dos últimos dias. Depois percorri uma região muito bonita, com pequenas descidas e subidas. Então vi um bando de papagaios numa árvore. Parei e contei, eram vinte e dois. Eles se assustaram e sairam voando em bando, fazendo a maior algazarra. Pouco mais a frente vi alguns tucanos e diversos outros passarinhos. Cheguei numa nova subida e um carro que vinha descendo parou ao meu lado e o motorista falou que eu teria muita dificuldade para passar por ali. Respondi que estava acostumado com as dificuldades do caminho e segui em frente. Mas a subida era bem pior do que eu esperava. Era quase uns quinhentos metros de muito barro, que além de ser escorragadio grudava na bike fazendo com que ela travasse. Tive que fazer muita força para seguir em frente. Chegou um momento em que eu olhava uns dez metros a frente, marcava mentalmente um ponto e fazia o maior esforço para chegar até  o tal ponto marcado. Tive que ter muita força de vontade para superar esse trecho. Não foi nada fácil, mas em nenhum momento me arrependi de estar ali. Igual na vida eu sabia que mesmo diante das maiores dificuldades, temos que ser fortes e seguir em frente custe o que custar. Atravessar aquele trecho de estrada foi uma grande lição para mim. Essa subida foi um dos piores momentos de toda a viagem pelo Caminho da Fé. Quando cheguei ao final da subida estava exausto, mal conseguia dar um passo mais. Descansei um pouco, subi na bike e reuni forças para continuar pedalando.

Pedalei mais um tempo por pequenas subidas e descidas, com curtas retas. Finalmente cheguei numa estrada asfaltada, no alto de uma serra, a Serra da Fartura. O guia dizia que dali para frente seria somente descida, até chegar a pequena cidade de São Roque da Fartura, onde passaria a noite. Mal comecei a pedalar pela estrada asfaltada e começou a chover. Desci a serra correndo muito, mesmo debaixo de chuva. Logo comecei a sentir muito frio, a chuva era gelada. Cheguei a atingir 50 km/h e tomei todo o cuidado para não derrapar nas curvas e cair. Quase chegando na cidade, o proteror solar que tinha passado no rosto, derretou com a chuva e foi parar nos meus olhos, ardendo muito e me deixando cego por alguns instantes. Eu vinha muito rápido e tive que parar sem enxergar nada, quase caindo num barranco. Lavei os olhos com água e voltei a pedalar. Ao chegar na entrada de São Roque da Fartura, a chuva parou e surgiu um belo arco-íris. A cidade é bem pequena, com poucas ruas e muita gente ficou me olhando passar. Parei em frente a igreja e me sentei na escadaria para descansar um pouco. Estava todo molhado, sujo e morrendo de frio. Olhei no guia e descobri que a pousada onde ia pernoitar era quase dois quilômetros depois da cidade. Então não perdi tempo e segui em frente.

Na saída da cidade peguei uma estrada de terra, numa região bonita, que com o arco-íris formava um quadro muito lindo. Para terminar bem o dia uma grande subida, onde empurrei a bike com as últimas forças que me restavam. Então finalmente cheguei a Pousada da Dona Cida. Ela estava sentada em frente sua casa e me recebeu muito bem. Mostrou-me onde ficava o quarto coletivo com vários beliches, me deu algumas dicas sobre o funcionamento da pousada e liberou um local para eu lavar a bike e minhas coisas, que estavam cheias de barro. Tirei tudo da bike, separei o que estava muito sujo e fui lavar tudo com um forte jato de água. A Dona Cida saiu para ir a igreja e me deixou sozinho na pousada, dizendo que se eu precisasse de algo podia entrar em sua casa e pegar. Fiquei admirado com a confiança depositada em uma estranho e fui terminar de lavar minhas coisas. Depois tomei um delicioso banho, tirei o barro acumulado em meu corpo, escolhi uma cama confortável e me deitei. Estava completamente exausto, nesse que tinha sido até então o dia mais difícil de toda a viagem.

Acordei um tempo depois com a Dona Cida me chamando para jantar. Fazia frio, pois a região é de serra e com a chuva que caiu a tarde, a temperatura despencou. Subi até a casa da Dona Cida e jantei em sua cozinha. Depois conversei um pouco com ela e seu marido. Ela me contou que tinha recebido uma ligação de Águas da Prata, da sede do Caminho da Fé e que tinham informado a ela que o trecho do caminho que eu teria que passar no dia seguinte estava impedido em razão das chuvas. Então o marido da Dona Cida me explicou o caminho que deveria fazer na manhã seguinte, todo ele em estrada asfaltada. Fiquei um pouco chateado em ter que sair do Caminho da Fé, principalmente em um trecho que dizem ser muito bonito e onde existe um conhecido mirante. Despedi-me dos dois e voltei para o quarto, onde logo me deitei. Estava muito cansado e com o frio que fazia peguei no sono rapidamente.

Finalmente o sol.
Barro e mais barro.
Barro grudado na bike.
No meio do caminho tinha uma árvore.
Conferindo o guia para não errar o caminho.
Igreja de Santana.
Momento de oração.
Pausa para descanso.
Com Seu Francisco, na Pousada da Dona Cidinha.
Mais uma subida.
Ponte quase submersa.
Chuva no horizonte.
Revoada de papagaios.
Na escadaria da igreja, molhado, sujo e com frio.
Arco-íris no final da tarde.
Tirando o barro da bike.

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