Caminho da Fé (4º dia)

“O verdadeiro peregrino sabe por que caminha, mas pensa que não sabe. E por ser chamado à peregrinação, acaba identificando o que já sabia, pois tinha na mente e veio à luz, na poeira do caminho.” 

(Luiz Carlos Marques da Silva)

Acordei ás 07h00min com o barulho de uma mensagem chegando pelo celular. Era minha amiga Liliam me mandando tomar cuidado, pois tinha tido um sonho ruim comigo. Confesso que isso me deixou preocupado, mas mesmo assim voltei a dormir. Levantei tarde, com preguiça, talvez por ser segunda-feira. Arrumei minhas coisas e desci para a garagem do hotel pegar a bike. O dono do hotel foi junto e me ajudou a colocar as coisas na bike. Saindo do hotel pedalei 200 metros e parei numa bicicletaria. Comprei óleo para lubrificar a corrente e pedi para o dono da bicicletaria regular o freio e as marchas que estavam escapando. Ele regulou tudo e não cobrou pelo serviço. Então ele disse que seria bom eu trocar o pneu traseiro, que estava meio ruim para enfrentar trechos com muita pedra que viriam pela frente. Agradeci o conselho e respondi que trocaria o pneu mais para frente.

Parei na igreja do Padre Donizete, um milagreiro local que está em processo de canonização para virar santo. Tirei algumas fotos e peguei água para a viagem num local com gamelas estilizadas, algo muito bonito. Precisava pegar o carimbo em minha credencial do Caminho da Fé, pois no hotel não tinham o carimbo. O local onde encontraria o carimbo seria na Secretaria de Turismo, que ficava ao lado da igreja. Era segunda-feira de carnaval e seria esperar demais encontrar uma repartição pública aberta. Então entrei na igreja pedir informação sobre o carimbo e fui recebido de forma muito atenciosa por um padre. Ele me deu um forte abraço e disse para eu ir até uma loja que vende artigos religiosos, no outro lado da rua, que o carimbo estava lá. Fui até a loja e uma moça muito simpática carimbou minha credencial. Ela me deu de presente duas relíquias do Padre Donizete. Na verdade trata-se de um santinho plastificado, onde de um lado tinha duas orações e do outro lado a imagem do Padre Donizete e um pedacinho de pano, que fazia parte do pano que envolveu os ossos do Padre Donizete quando o mesmo foi exumado e teve seus ossos transferidos do cemitério da cidade, para a igreja que leva seu nome. É uma exigência do Vaticano que pessoas em processo de santificação tenham seus restos mortais sepultados dentro de igrejas. Ainda na loja duas senhoras vieram perguntar se eu estava fazendo o Caminho da Fé. Daí disseram que eu era corajoso por fazer o caminho sozinho, me desejaram sorte e pediram que orasse por elas em Aparecida. Coloquei um dos santinhos do Padre Donizete na bolsa de guidão, sob um plástico transparente o que tornava o santinho visível para todos. Esse santinho ficou ali até o final da viagem.

Saindo da loja atravessei a praça da igreja e do outro lado da rua parei numa lanchonete fazer um lanche, que seria meu almoço naquele dia. Pouco depois do meio dia iniciei minha pedalada do dia. O tempo estava nublado e sem chuva. Pedalei por cerca de um quilômetro pela cidade e ao passar em frente ao cemitério fiquei curioso para ver o antigo túmulo do Padre Donizete. Entrei no cemitério, o segurança da entrada ficou cuidando de minha bike e após caminhar poucos metros vi o túmulo do padre, que se destacava entre os demais. O túmulo é todo em vidro e mesmo com os restos mortais do padre não estando mais ali, o túmulo foi mantido como era e recebe muitos visitantes. O lugar onde ficava o corpo está vazio e coberto com uma tampa de vidro. A tampa estava toda embaçada, úmida por dentro. Pensei que o motivo seria a chuva dos últimos dias, mas depois fiquei sabendo que tal fenômeno é permanente. Mistério? Causa física? Não sei! Tem certas coisas que prefiro não saber os motivos. Saí do cemitério e voltei a pedalar.

Logo na saída da cidade tem uma ponte e ao lado um pequeno portal do Caminho da Fé. O caminho segue por um pinguela, que estava bastante escorregadia. Olhei no guia, que dizia que era para atravessar o rio pela pinguela e seguir pela direita dentro da propriedade ao lado da plantação e paralelo a estrada de terra. Foi o que fiz e ao atravessar a pinguela quase que a bicicleta fica entalada entre dois tocos, por culpa dos alforjes laterais. Comecei a percorrer um trilha tomada pelo mato e com muito barro. Tive que empurrar a bike e conforme avançava a vegetação ia ficando mais densa e empurrar a bike foi ficando difícil. Ao lado tinha um rio com muita vegetação e diversas espécies de pássaros, algo muito bonito. A trilha foi desaparecendo no meio da vegetação. Para um caminhante passar ali era interessante, já para um ciclista era terrível. Tentei seguir pelo lado do canavial que ficava próximo, mas logo me cortei com folhas da cana e fulo da vida decidi parar. Peguei o guia, li e reli para ver se tinha pegado o caminho errado. Pelo guia eu tinha seguido pelo caminho correto, mas não dava para seguir em frente. Raciocinei um pouco e resolvi voltar até a pinguela e tentar seguir pela estrada de terra paralela a plantação. Com muito esforço atravessei o mato e cheguei até a pinguela. Dali passei por um barreiro e alcancei a estrada de terra. Então vi as setas amarelas que indicam o Caminho da Fé pintadas em um poste e numa cerca. Ali entendi que não daria para confiar cem por cento no guia e também que o portal e a pinguela são bonitinhos, mas inúteis. Devia ter algum aviso informando que somente caminhantes deveriam seguir pela pinguela e entrar na propriedade ao lado, e que ciclistas deveriam seguir pela ponte ao lado e virar a direita na estrada de terra. Isso teria me poupado meia hora de tempo perdido e esforço físico inútil. Sem contar que me cortei e ganhei vários arranhões nos braço e pernas por andar pelo mato e no canavial. E parar piorar ainda mais as coisas, entrou mato na coroa e catraca da bike. Levei meia hora par conseguir tirar o mato. No final das contas tinha perdido uma hora e me ferrado um monte por culpa da sinalização equivocada naquele trecho e do guia que não foi nada prático nas informações.

Ainda bravo subi na bike e comecei a pedalar. Não andei 300 metros e começou a chover. Coloquei a capa de chuva e segui em frente, ainda bravo. Logo cheguei a umas subidas com muita lama. Numa delas o pneu traseiro patinou dando um giro de 360 graus sobre o eixo. Desde criança ando de bicicleta e nunca tinha visto um pneu girar dessa forma. Segui em frente e logo descobri que estava juntando lama em várias partes da bike, inclusive no sistema de freios, que passou a não funcionar corretamente. Logo tive outro problema com o guia, que dizia sobre uma cerca a direita, quando eu só via uma cerca a esquerda e na frente dela uma placa do Caminho da Fé com uma seta amarela. Fiquei um tempo lendo as instruções no guia e entendi que logo mais a frente o caminho retornaria a estrada em que eu estava. Para não me meter em outra furada, resolvi ignorar o guia e não entrar pela tal cerca. Segui pela estrada e cada vez surgia mais lama e poças d’agua. Com o freio ruim, nas descidas todo cuidado era pouco. Comecei a utilizar uma técnica do MotoCross, usando uma perna como apoio e equilíbrio, tocando o pé no chão. Com o cambio regulado as marchas não escapavam mais e dessa forma conseguia pedalar em subidas leves que nos dias anteriores eu teria que descer da bike e seguir a pé.

A chuva foi aumentando e a estrada ficando cada vez mais intransitável. Em dado momento entrei muito veloz em uma curva cheia de lama e fui derrapando lateralmente de um lado ao outro da estrada, sem conseguir parar. Até agora não entendo como não caí. Por sorte não vinha nenhum carro, senão seria acidente na certa. Segui mais um tempo por essa estrada ruim e de repente numa curva me deparei com uma estrada asfaltada. E para melhorar ainda mais a situação, a chuva parou. Não fiquei pedalando muito tempo no asfalto e logo após atravessar uma ponte a setas indicavam para virar a esquerda e descer por uma estrada de terra, no meio de um canavial. Na verdade não era terra, mas sim areia vermelha, areião.

Estava seguindo tranquilamente pela estrada e dessa vez sentindo calor, pois com o fim da chuva ficou muito abafado, sinal de que até o final do dia choveria forte novamente. Passei ao lado de uma fazenda e vi na estrada um cachorro enorme. Ao me ver, o cachorro se espreguiçou e ficou parado. Quando passei por ele o cão começou a latir e a correr atrás de mim. Levantei a perna esquerda do pedal e coloquei sobre o guidão como forma de proteção. Então ouvi latidos vindos da fazenda, do outro lado e quando olhei vi um cachorro ainda maior passar pela cerca de arame farpado e vir correndo atrás de mim. Tirei a outra perna do pedal e tentei me equilibrar sobre a bike. Era descida, a velocidade era alta e a bike seguiu derrapando na lama. O coração estava na boca e a única coisa que consegui pensar foi que se eu caísse fatalmente seria devorado pelos cães ferozes. Por sorte eles logo desistiram da caçada. Então olhei para o lado e vi logo a frente uma pequena igrejinha ao lado do canavial. Resolvi parar ali e após me certificar que os cachorros tinham ido realmente embora, sentei-me na porta da igreja para descansar, beber água e me recuperar do cagaço pelo qual tinha acabado de passar.

Logo voltei a pedalar e comecei a ver ao longe a chuva caindo. Saí do meio do canavial e entrei numa região de mata. O calorão desapareceu e passei a sentir frio no meio da mata. Não demorou muito e a chuva caiu forte. E para variar ela sempre vinha de frente, dificultando ainda mais o pedalar. Andei vários quilômetros sob chuva e logo entrei numa larga estrada de terra, cheia de poças d’agua. Andei um longo tempo por essa estrada e finalmente a chuva parou e o sol surgiu. Era a primeira vez que eu via o sol desde que iniciará o Caminho da Fé. O sol não durou nem cinco minutos e desapareceu. Começou a cair uma chuva fina e finalmente cheguei ao fim daquela estrada monótona e cheia de buracos. Ela terminava numa estrada asfaltada e as setas indicavam para eu seguir pela esquerda, por uma descida. De repente vi surgir no meio da chuva e das nuvens a cidade de Casa Branca, no alto de um morro. Esse seria meu destino final naquele dia. Aquela foi uma bela visão para um ciclista molhado, cansado e com frio.

Segui pela estrada asfaltada, numa descida longa e em curva, seguida por mais uma curva. Desci embalado e quando estava a 42 km/h descobri que os freios não estavam funcionando. Consegui não me apavorar e na hora lembrei-me de meu amigo Lucas Pierin e de tê-lo visto meses antes freando uma bike sem freio, com o pé. Na hora meti a sola do pé esquerdo no asfalto e assim consegui reduzir a velocidade e terminar a descida em segurança. Logo veio uma extensa subida, uma curva a direita e cheguei a Casa Branca. E foi chegar à cidade para cair um semi dilúvio. Fui seguindo a sinalização das setas amarelas pintadas em postes. Logo comecei a subir por um rua bastante íngreme, empurrando a bike. Ao lado da calçada descia tanta água que mais parecia uma cachoeira. Parei e lavei a bike na enxurrada, tirando todo o barro acumulado durante o dia, Também lavei meu tênis e pernas. Segui em frente e logo cheguei ao Santuário do Desterro, local onde passaria a noite. Tinha percorrido 33 difíceis quilômetros nesse dia.

Logo na entrada do Santuário existe uma igreja com uma bonita fachada, onde um mosaico mostra a fuga de Maria e José rumo ao Egito. Entrei no Santuário e logo uma pessoa veio me atender e me levou até um quarto coletivo. La já estavam dois caminhantes, Vinicius e Aluan, que faziam uma parte do Caminho da Fé a pé. Guardei a bike dentro do quarto, tomei um delicioso banho quente e arrumei e limpei minhas coisas. Depois fui andar pelo Santuário. Estava sendo realizado ali um retiro de carnaval com cerca de 150 pessoas, jovens em sua maioria. Fui até a igreja, rezei um pouco e depois fiquei olhando o local. Num canto fica a sepultura do Coronel João Gonçalves dos Santos, sua esposa e filhas. O Coronel, muitos anos antes construiu uma capela no local em pagamento a uma promessa. Com o tempo muitas pessoas iam até o local rezar e em 1936 no ali foi construído Santuário, onde no passado funcionou um Seminário. No altar da igreja está sepultado o Irmão Roberto Giovanni, ao qual são atribuídos diversos milagres e que se encontra em processo de canonização. Em uma sala próxima ao altar fica um armário onde guardam objetos e roupas que pertenceram ao Irmão Roberto, bem como objetos deixados pelos devotos como forma de agradecimento. Achei tudo aquilo muito curioso. Para quem não sabe, na Igreja Católica, Irmão é aquele que estuda, faz os votos igual um padre, mas não se torna padre, não reza missa. Após o curto passeio voltei para o quarto e dormi até a hora do jantar.

Pouco antes das 20h00min fui jantar em companhia do Aluan e do Vinicius. Jantamos com os participantes do retiro e aproveitei para conversar com algumas pessoas. A comida estava muito boa e eu com fome não me fiz de rogado e repeti duas vezes. Fui convidado para participar de uma celebração que aconteceria logo após o jantar. Aceitei o convite. Foi uma celebração interessante, com canções e uma pregação via telão, tudo muito espiritual. Teve um intervalo e fiquei conversando com uma moça chamada Michele, que me contou um pouco da história da cidade. Logo voltamos para a celebração, que terminou por volta da meia noite. Então fui dormir e lembrei-me do sonho de minha amiga Liliam, que felizmente não se concretizou, mas tinha sido por pouco, pois naquele dia eu tinha passado por vários apuros.

Igreja do Padre Donizete, Tambaú – SP.
Local para pegar água na  Igreja do Padre  Donizete.
O túmulo vazio do Padre Donizete.
Atravessando pinguela na saída de Tambaú.
Portal do Caminho da Fé. Tambaú – SP.
Trilha tomada pelo mato.
Estrada escorregadia.
Atravessando ponte sobre linha férrea.
Igrejinha perdida ao lado do canavial.
Descansando em frente a igrejinha.
Do lado direito, seta indicando o caminho.
Sujinho…
Mosaico da Igreja do Santuário do Desterro.
A bike guardada no quarto.
Túmulo do Irmão Roberto Giovanni.
Armário com objetos do Irmão Roberto.

6 opiniões sobre “Caminho da Fé (4º dia)

  • 26 de março de 2011 em 02:35
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    uma pergunta… quem tirava as fotos em que vc aparece longe da camera????

    Resposta
    • 29 de março de 2011 em 14:15
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      rs…

      Teve mais gente que me fez essa pergunta.

      O segredo é utilizar um tripé, uma câmera que bate foto de forma automática e usar a imaginação, bem como saber onde colocar o tripé, seja numa cerca, uma porteira, no chão, em cima de uma pedra, uma árvore e por aí segue…

      Beijo,

      Vander

      Resposta
  • 31 de março de 2011 em 10:57
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    Adorei a frase inicial … me lembrou ainda outra frase… “quando achamos que sabemos todas as respostas vem a vida e muda todas as perguntas”

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    • 31 de março de 2011 em 21:38
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      Lilian,

      Eu que o diga sobre a vida mudar as perguntas. Comecei essa viagem cheio de perguntas e terminei sem todas as respostas e com novas perguntas.

      Beijão,

      Vander

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  • 26 de julho de 2011 em 15:15
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    E o resto da história?? Tava adorando…

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    • 28 de julho de 2011 em 14:37
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      Oi Sara,

      A história continua, vai até o 13o. dia. Basta ir subindo que você encontra as postagens dos outros dias.

      Abraço,
      Vander

      Resposta

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