Caminho da Fé (7º dia)

“Peregrinar é rezar com os pés.” 

(Autor Desconhecido) 

Acordei 8h30min, olhei pela janela e vi que o sol brilhava forte, mas mesmo assim fazia um friozinho. Da janela dava para ver um pouco distante a pequena São Roque da Fartura na encosta de uma morro, uma paisagem bonita. Estava todo dolorido do esforço do dia anterior e o jeito foi tomar um remédio para dor. Arrumei minhas coisas, tomei café na cozinha da Dona Cida e logo peguei a estrada, pois queria aproveitar o dia de sol e tentar chegar até a cidade de Andradas, já em território mineiro. Ou seja, pretendia fazer pouco mais de cinqüenta quilômetros naquele dia, então não podia perder tempo. Antes de partir confirmei com Dona Cida sobre a informação de que deveria seguir pela estrada asfaltada e não pela estrada de terra por onde passa o Caminho da Fé. Diante da resposta de que deveria seguir pela estrada asfaltada, despedi-me e parti. Até então não tinha usado capacete para pedalar. Em razão da chuva dos primeiros dias, tinha achado melhor não utilizar luvas e capacete, pois seriam mais coisas para molhar. No dia anterior, com sol, tinha usado luvas. Agora que passaria por trechos perigosos, era melhor usar equipamento completo, por segurança.

Logo ao sair da Pousada da Dona Cida andei alguns metros por uma estrada de terra e cheguei à estrada asfaltada. Próximo tinha a entrada de uma cachoeira, mas tinha tomado tanta chuva nos últimos dias que não fiquei com vontade de ver mais água. Comecei a pedalar pelo canto da estrada, pois a mesma não tinha acostamento. Fiquei preocupado com isso, pois sabia que seriam 22 quilômetros até chegar à próxima cidade, Águas da Prata. Se todo o trecho fosse naquela estrada, seria bastante perigoso. Não andei muito e cheguei numa grande subida, onde o jeito foi descer e empurrar a bike. Procurei ir bem no canto da estrada, mas mesmo assim os carros passavam bem próximos a mim. Felizmente a maioria dos carros ao passar por mim distanciavam-se, indo para a pista contrária. A subida parecia não ter fim, foram quase três quilômetros empurrando a bike, até que cheguei no alto de uma serra. Ali subi na bike e comecei a descer, descer e descer. Havia muitas curvas fechadas e buracos na pista, tive que tomar muito cuidado. Abusei do freio traseiro e ele logo começou a falhar, dando sinais de desgaste. Após uma das muitas curvas, tive que parar num local onde trabalhadores estavam consertando a estrada e o trânsito estava momentaneamente impedido. Um cara que cuidava do trânsito veio até mim e me deu uma bronca, dizendo para eu não correr tanto pois podia colocar em risco a vida de um dos operários que trabalhavam na estrada. Inicialmente achei que ele estava brincando e tinha até pensando em fazer uma piadinha, mas diante da cara amarrada dele vi que a bronca era séria e resolvi me calar. Depois de alguns minutos ele liberou a estrada e voltei a descer feito louco estrada abaixo, testando o freio traseiro e vendo que ele estava cada vez pior. Então em uma curva vi que estava chegando numa cidade, a qual não lembro o nome e que não constava em meu guia. Daí lembrei que estava fora do percurso original do Caminho da Fé e que por esse motivo a tal cidade não era mencionada no guia. Chegando no trevo da cidade descobri que a estradinha ruim que estava percorrendo terminava ali e que dali para frente eu deveria seguir por uma rodovia bastante movimentada. Seria serra abaixo o tempo todo. Ao menos o acostamento era bom.

Comecei a seguir pela rodovia, primeiro na contramão e depois pela mão correta, onde o acostamento era mais largo. Era descida o tempo todo e curvas bastante abertas onde dava para correr bastante. Eu não precisava pedalar, era só deixar a bike descer. A paisagem em volta era muito bonita, mas não dava para ficar apreciando. Logo o freio de trás parou de funcionar de vez. Parei para tentar consertar, mas não foi possível. Tive que tomar muito cuidado dali para frente, freando somente com o freio dianteiro. Logo descobri que em razão do peso da bike e da velocidade com que estava descendo, quando eu apertava o freio dianteiro, conseguia parar somente uns cinco metros depois. Isso poderia ser muito perigoso caso precisasse parar bruscamente por culpa de algum buraco, ou carro parado no acostamento. Passei a tomar ainda mais cuidado, observando bem a estrada à frente. Mesmo assim corri bastante e não demorou muito para chegar num trevo, sair da rodovia e entrar numa estrada menor. Mais alguns metros e cheguei numa ponte, que não tinha acostamento. Para piorar a situação, a ponte ficava numa curva em descida. Estudei a melhor forma de atravessar a ponte e resolvi empurrar a bike pela contramão. Logo nos primeiro metros sobre a ponte, notei que os carros que subiam em sentido contrário estavam bem devagar. Imagino que algum carro que estava descendo tenha dado sinal de luz avisando que tinha algum perigo (no caso eu) na pista e por isso os carros diminuíram a velocidade. Ou então foi a Providência Divina que mais uma vez me ajudou. Atravessando a ponte, subi na bike e voltei a pedalar pela contramão. Logo cheguei à cidade de Águas da Prata. Tinha percorrido vinte dois quilômetros em menos de duas horas, um recorde.

A cidade de Águas da Prata é uma conhecida estação termal, que recebe muitos turistas. Cidade antiga e simpática, foi ali que começou o movimento pela criação do Caminho da Fé e é nela onde fica a sede do Caminho da Fé. A cidade é pequena e logo estava pedalando pelo centro. Vi uma bicletaria e parei para regular o freio. O rapaz que fez o serviço não cobrou nada. Agradeci e ao sair da bicicletaria descobri que ela ficava ao lado da sede do Caminho da Fé, onde também funciona uma Pousada para os peregrinos. Fui até lá pegar o carimbo na credencial e conhecer o lugar. Ali fiquei sabendo que a informação sobre o trecho entre São Roque da Fartura e Águas da Prata estar intransitável era incorreta. Fora motivada por culpa de um peregrino meio enjoado que não deve ter gostado de atravessar trechos de muito barro e chegando na sede do Caminho da Fé passou a informação de que era impossível andar por aquele trecho. Eu tinha passado por trechos muito ruins e não teria tido problemas em passar por esse trecho. Foi uma pena ter sido vítima de uma informação errada, mas não dava mais para voltar atrás. O negócio era seguir em frente e foi o que fiz.

Na saída de Águas da Prata, parei fazer um lanche leve, numa lanchonete que fica em frente a antiga Estação de Trem, que foi inaugurada por Don Pedro II. Não me demorei muito e segui em frente. Andei cerca de um quilômetro pelo asfalto e entrei numa estrada de terra. O sol estava muito forte e fazia bastante calor. A estrada tinha subidas curtas e muitas retas o que fez render a pedalada. Passei por um igrejinha perdida no meio do mato e parei para descansar e tirar algumas fotos. Não me demorei e segui em frente.

Boa parte da tarde segui por meio de uma estrada deserta e fiquei um bom tempo sem ver ninguém. Passei por uma cachoeira no meio do mato e parei para descansar um pouco. Depois atravessei uma região de mata fechada, onde a sombra e a umidade davam a sensação de frio. Era como entrar num ambiente com ar condicionado ligado. Em alguns trechos no meio da mata, dava certo medo do silêncio do lugar ou então de ruídos estranhos que vinham do mato. Nessas horas a imaginação “viaja” um pouco e fiquei imaginando que a qualquer instante um onça surgiria no meio da estrada. Felizmente o único animal que surgiu foi um tatu, ao lado da estrada. Parei bem pertinho dele e fiquei em silêncio o observando. Até que em determinado momento ele começou a farejar o ar, sentiu meu cheiro e saiu correndo para o meio do mato. Confesso que meu cheiro não deveria ser dos melhores, sujo e suado como estava.

E finalmente numa curva da estrada cheguei num rio que não tinha ponte e que segundo informações era a divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Pensei que o rio era raso e fui tentar atravessá-lo pedalando. Quando chegou no meio do rio descobri que ele era um pouco fundo e por pouco não caio um tombo feio. Consegui descer da bike e atravessei caminhando. Mesmo num dia de muito sol eu consegui molhar os pés. Era o sétimo dia de viagem e o sétimo dia em que eu ficava com o tênis molhado. À noite no hotel ao olhar o guia, vi que o mesmo informava sobre uma pinguela no lado direito da estrada, que permitia atravessar esse rio sem se molhar. Confesso que não vi tal pinguela, isso se ela ainda existir.

Foi de certa forma algo marcante passar a pedalar em outro estado. Sabia que dali para frente o caminho ficaria mais difícil, pois em Minas Gerais tem muitas serras e trechos com pedras. No dia anterior, o Seu Francisco tinha me falado que em Minas o caminho seria bem mais “dificultoso”. Mas estava preparado para tudo e cada dia estava mais perto de meu destino final, o que era algo bastante motivador. Mais uma vez fiquei sem água e com o calor que fazia isso foi um complicador. Olhando no guia vi que passaria pela Pousada do Gavião, que ficava alguns quilômetros a frente de onde estava quando acabou minha água. Então passei a pedalar mais rápido, até que cheguei à pousada. Uma funcionária me atendeu e encheu minhas garrafinhas com água. Aproveitei para tomar um Guará Vita, uma espécie de refrigerante que só é vendido no Sudeste e que gelado é muito bom. Também ganhei mais um carimbo em minha credencial e segui em frente. Tinha um longo trecho até chegar em Andradas, onde passaria a noite. E não queria correr o risco de ficar na estrada à noite.

O trecho final antes de Andradas foi bastante difícil, pois tinha muitas pedras na estrada. O trecho era todo em descida, inclinadas demais. Tive que tomar muito cuidado para não derrapar nas pedras e cair. Qualquer descuido seria fatal. As mãos doíam de tanto apertar os freios. Mesmo sendo descida não dava para correr, tinha que seguir devagar em meio à estrada pedregosa e freiando sempre. Sofrer uma queda naquele lugar era fácil e como a região era deserta, caso eu caísse e me machucasse, ia demorar até conseguir algum tipo de socorro. Então segui com muito cuidado, atenção triplicada. Começou a escurecer e logo fiquei preocupado, pois não via mais nenhuma seta indicando o Caminho da Fé. Fiquei com receio de não ter visto alguma seta indicando que deveria seguir por outra  das estradinhas pelas quais passei. Concentrado como estava em olhar para o chão e evitar cair nas pedras, bem que podia ter deixado passar despercebido a sinalização. Comecei a ficar muito preocupado com a possibilidade de estar no caminho errado. Voltar para trás seria muito complicado, em razão das descidas íngremes e cheias de pedras se transformarem em subidas íngremes e cheia de pedras. Rodei mais uns dois quilômetros até encontrar uma seta amarela pintada em uma árvore, sinalizando que o caminho estava correto. Ver aquela seta me deu uma grande sensação de alívio.

Já no final do dia pude avistar a cidade de Andradas. Então começaram a passar alguns carros pela estrada que até então estava deserta, todos em alta velocidade e mal tomando conhecimento de minha presença na estrada. Passei a tomar ainda mais cuidado. Finalmente cheguei à periferia da cidade e seguindo a sinalização das setas amarelas pintadas em postes, fui me aproximando do centro da cidade. O trânsito era caótico, o fluxo de veículos intenso e por mais de uma vez quase fui atropelado. Nessa de tomar cuidado com os carros, acabei passando direto pelo hotel onde pretendia passar a noite e somente um quilômetro depois é que me dei conta disso. Então dei meia volta e segui empurrando a bicicleta pela calçada. Chegando no hotel tive que fazer um último esforço e subir uma enorme escadaria com a bike, até chegar no quarto. Tinha percorrido 54 quilômetros nesse dia, parte graças aos 22 quilômetros de descidas pela estrada asfaltada. Mesmo assim era uma quilometragem considerável e que me deixou feliz.

Com a bike dentro do quarto nem precisei tirar o alforje com minhas coisas, igual fizera em todos os dias anteriores. E como não tinha chovido, não tinha molhado nada. Era o primeiro dia sem chuva desde o início da viagem. Fui tomar banho e deitei para descansar um pouco. Logo começou a chover. Ao menos dessa vez eu não precisava me molhar na chuva. Quando a chuva parou, saí dar uma volta pelo centro da cidade. Lanchei e aproveitei para ir numa Lan House e ver meus emails. Fazia uma semana que não acessava a internet. Nos dois primeiros dias foi complicado ficar sem internet, quase tive crise de abstinência. Mas depois não fez falta. Essa viagem me fez ver que posso viver com pouca coisa, que tudo na vida é uma questão de se adaptar ao meio em que se vive. Logo voltei para o hotel e dormi cedo, cansado que estava.

São Roque da Fartura – SP.
Trevo.
Tentando consertar o freio.
Descanso e água.
Em frente a sede do Caminho da Fé.
Águas da Prata – SP.
Ao fundo a Estação de Trem que foi inaugurada por Don Pedro II.
Igrejinha ao lado da estrada.
Placa indicando a distância que ainda tenho que percorrer.
Descansando próximo a cachoeira.
Mais uma fazenda para atravessar.
Rio na divisa entre São Paulo e Minas Gerais.
Estrada mineira.
Tatu.
Trecho com muitas pedras.
Chegando à Andradas.

4 opiniões sobre “Caminho da Fé (7º dia)

  • 31 de março de 2011 em 20:36
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    poços de calllllllllldas, onde painho nasceu!!!
    Ow, ficasse pitel com as “carça” erguida pra passar o rio, detalhe que qd li, imaginei um rio imeeeeeeeeeeeenso hehehe!
    Ah, continuo te dando pontos pelas fotos, imagino o mico, ficar montando tripé, por maquina no asfalto e correr pra sair na foto “informal” hahahahah, congratulations!!!!!!!!!

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    • 31 de março de 2011 em 21:36
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      Querida amiga,

      A bermuda já estava erguida antes de eu chegar ao rio. Tinha “levantado” a bermuda para pegar sol também nas coxas.

      O rio não era imenso, mas quase caio nele, e molhei os pés. Você não imagina como é ruim pedalar com os pés encharcados num dia de sol.

      E não vejo “mico” em tirar fotos com o tripé, pois a cada dia pouco me importo com o que os outros pensam ou falam de mim. Então não estou nem aí para o que os outros achavam de mim tirando fotos com o tripé. Sem contar que poucas vezes alguém me viu tirando fotos dessa forma, já que quase sempre eu estava no meio do mato e as únicas testemunhas foram as muitas vacas que vi pelo caminho.

      Beijão e continue fazendo seus comentários sarcásticos…

      Vander

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  • 9 de fevereiro de 2012 em 18:57
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    Irmão, li todo seu relato do caminho da fé no mochileiros.com, achei maravilhoso. Na verdade o mais completo que já encontrei até aqui. Preciso de uma informação qual a câmera que voce usa e qual o tripé?????

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    • 10 de fevereiro de 2012 em 13:57
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      Olá!!!

      Bom saber que leu meu relato sobre a viagem pelo Caminho da Fé, e que tenha gostado do relato.

      Com relação a sua pergunta, levei na viagem uma câmera “simples”, uma Sony digital, DSC-W530, com 14.1 MP. E o tripé levei um simples, de 30 cm. Como tinha que reduzir peso, tanto a câmera, quanto o tripé eram pequenos e leves. E resistentes, pois tomaram chuva, levaram algumas quedas. E consegui tirar boas fotos, sendo que em alguns casos tive que fazer algumas composições de foto, usando a câmera no automático e o tripé em cima de alguma pedra, cerca, porteira e sobre a própria bike. Só levei uma bateria e recarregava a mesma todas as noites. E levei dois cartões de memória de 2GB, pois em razão do peso e do risco de roubo, não levei note book para descarregar as fotos. Então ia acumulando as fotos diariamente nos cartões de memória. E tomava o maior cuidado para não perdê-los, pois se isso acontecesse a perda das fotos seria irreparável.

      Grande abraço,

      Vander

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